por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Os que conhecem a espiritualidade inaciana sabem que para Santo Inácio o exame
de consciência é uma peça-chave. Modo de orar curto, constituído por cinco
pontos e um colóquio. Assim foi proposto pelo fundador da Companhia de Jesus
como algo que deve ser feito pelo exercitante ao término de cada dia da
experiência dos Exercícios Espirituais.
Porém, não se limita à duração de trinta dias dos Exercícios ou a suas
adaptações em versões menores (8, 10 ou mesmo 3 dias) a prática do exame de
consciência. Santo Inácio pretende que seja feita por aqueles que são
formados em sua escola espiritual, notadamente os jesuítas, mas também outros
religiosos e leigos de ambos os sexos. Chega mesmo a considerar
peça-chave para o discernimento da vontade de Deus em cada ocasião, a ponto de
afirmar nas Constituições da Companhia de Jesus que o jesuíta formado poderia
ficar dispensado da oração diária se a missão assim o exigisse. Mas nunca
do exame de consciência.
O exame ajuda a não perder o pulso da realidade, a olhar para a própria vida
com visão crítica, reconhecer as falhas e ver como pode corrigi-las.
Ajuda igualmente a ter uma atitude humilde diante de si mesmo, tomando
consciência da própria limitação. E ajuda, finalmente, a fazer projetos e
propósitos para reverter o que se percebeu como deficiente na própria vida,
agradecendo a graça divina que nunca falta e sempre socorre quem para Deus se
volta com coração humilde.
Isso pretende o Papa ao propor, em discurso na Bolívia aos movimentos sociais,
que reconheçam que algo tem que mudar, não só localmente, mas universalmente.
Não se pode aceitar que existam ainda pessoas sem trabalho, sem teto, sem-terra
no continente mais cristão do planeta. Da mesma forma, as coisas não andam
bem quando há pelo mundo tantas guerras sem sentido, violência fratricida
ceifando vidas às centenas e aos milhares aqui e em outros pontos do planeta.
E apontando para sua última encíclica, Francisco insere em seu exame de
consciência o convite ao reconhecimento de que as coisas não andam bem na
maneira como tratamos a Mãe Terra, “quando o solo, a água, o ar e todos os
seres da criação estão sob constante ameaça”. Reconhecer que as coisas
não estão bem impõe uma conversão: assim não se pode continuar. Há
que mudar o rumo dos ventos, dos fatos. Há que converter-se.
E convida seus ouvintes a dizer sem medo: queremos mudança, mudança real,
mudança estrutural. Este sistema já não se aguenta. Não o aguentam os
camponeses, os trabalhadores, as comunidades, os povos...e a terra.
Ninguém aguenta mais este sistema. E nós, surpresos e maravilhados, ouvimos
talvez pela primeira vez da boca de um Papa, da autoridade máxima da Igreja
Católica, a condenação explícita do sistema vigente, ou seja, do capitalismo
liberal em todas as suas versões mais radicais e mais mitigadas.
Sem adoçar as palavras, o Pontífice chamou o domínio do capital e a ganância do
dinheiro de “sutil ditadura”. Essa ditadura nos rouba a liberdade que, como filhos
de Deus, recebemos como o mais gracioso e encantador presente. Converte o
capital em ídolo e dirige por caminhos tortuosos as opções dos seres
humanos. A avidez por dinheiro que ela provoca tutela todo o sistema
socioeconômico, arruína a sociedade, escraviza o ser humano, destrói a
fraternidade, coloca povo contra povo e põe em risco a casa comum que é o
planeta.
Se queremos mudança no sentido de mais justiça, mais vida para todos, mais
fraternidade e convivência, há que reconhecer humildemente que essa “sutil
ditadura” tem poder sobre nós e procurar encetar o caminho de conversão que nos
libertará dela e nos devolverá a liberdade.
Para andar neste caminho que não é fácil, Francisco sabe que precisamos de
guias, de mestres, de líderes. E em seu discurso institui como líderes,
os pobres. Falando com os membros dos movimentos populares, cuja maioria
é gente humilde, trabalhadora e sofrida, disse-lhes: o futuro da humanidade
está, em grande medida, em suas mãos, em sua capacidade de organizar-se, de
promover alternativas criativas...
Dizendo isso aos pobres, dizia a todos nós: olhem para eles, vejam suas
vidas, suas iniciativas. Vejam seu sofrimento e vejam como o superam.
Olhem, vejam, atuem. Não há conversão que não passe por uma aliança de vida e
coração com os mais pobres, com as vítimas da sutil ditadura do capital.
O exame de consciência que o Papa propôs na Bolívia certamente nos ajudará a
compreender que somente uma atenção amorosa aos desafios da realidade e à vida
dos pobres poderá recolocar-nos no caminho que leva à verdadeira vida.
A teóloga Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão" (Edusc)
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