Por Maria Clara Bingemer
Amigo
é coisa pra se guardar...debaixo de sete chaves... já cantava Milton
Nascimento com sua monumental voz. Amigo é feito casa, que se faz
aos poucos e com paciência para durar pra sempre... afirma Zélia Duncan...Amigo
é pra essas coisas... cantava o MPB4 nos meus tempos de menina.
No Brasil não se comemora tanto o Dia do Amigo. Não é assim em outros
países, como a Argentina e o resto da América hispânica. A data é bem
celebrada e amigos se paparicam uns aos outros, jantam fora, se dão presentes
etc. Já o grande escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que a única
virtude de seus conterrâneos é o vício da amizade. E é verdade – eu
concordo porque tenho marido portenho. Os argentinos são convencidos, selvagens
no futebol e muitas coisas mais. Mas quando são amigos, demonstram
lealdade a toda prova e morrem por você.
Na realidade, a amizade tem tudo a ver com o amor e é deste uma das formas mais
excelentes e profundas. A palavra tal como a pronunciamos deriva do latim
“amicus” (amigo), que possivelmente se derivou de amor, amar. É uma relação
afetiva profunda entre pessoas sem características romântico-sexuais. Envolve
conhecimento mútuo e afeição, e supõe lealdade até a morte, até o ponto do
altruísmo e do sacrifício. Pode e efetivamente acompanha igualmente relações de
outro tipo: entre pais e filhos, entre irmãos e mesmo entre namorados e
cônjuges.
Envolve um tanto de gratuidade e dedicação, e de aceitação do outro tal como
ele é. Amigos podem ser diferentes, mas se aceitam e se acolhem com todas
as suas diferenças, amando-as e não rejeitando-as. Por isso, os amigos são pessoas
que se conhecem muito entre si, mais que os próprios familiares e
cônjuge. São depositários de toda a confiança recíproca e muitas vezes
são confidentes privilegiados.
Esta é a razão pela qual a amizade é cantada pela música, celebrada pela poesia
e santificada pelas religiões. Seu valor é ser uma experiência humana de
vital importância. A Bíblia narra e comenta casos de amizade prototípicos
que inspiraram a humanidade ao longo dos séculos. No primeiro livro de
Samuel, a amizade entre Davi, que depois seria rei, e Jonatas, filho do rei
Saul, é uma dessas. E o glorioso rei Salomão escreveu a sabedoria da Amizade em seus
Provérbios: "Em todo o tempo ama o amigo, e na angustia se faz o
irmão"
No
Novo Testamento, Jesus de Nazaré exalta a amizade – philia – e
a cita como exemplo de sua relação com os discípulos. “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o
que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto
ouvi de meu Pai.” Pronuncia essas palavras ao comparar-se
a uma videira da qual os discípulos são os ramos e Deus Pai o agricultor.
E acrescenta: “Ninguém tem maior amor do que aquele
que dá a sua vida por seus amigos...Vós sois meus amigos, se fazeis o que vos
mando.”
Já na Antiga Grécia, o termo “philia” – o mesmo que
emprega o Novo Testamento – é traduzido geralmente como “amizade” e, às vezes,
também como “amor”. Aristóteles dá vários exemplos de “philia”, desde amantes
até membros da mesma comunidade religiosa, mas destaca os amigos para toda a vida.
E o Estagirita não deixa de sublinhar que se trata de uma experiência
eminentemente humana, e não pode ser vivida com animais, sendo possível apenas
usar o termo “philia” com animais de estimação.
O conteúdo central da “philia” é, portanto, o de
fazer bem a alguém e também recebê-lo de alguém. Aristóteles ainda ousa
acrescentar que a “philia” é necessária como um meio para atingir a felicidade,
afirmando literalmente: “Ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo se tiver
todos os outros bens”.
Assim tenta explicar Jesus de Nazaré aos discípulos
quanto os ama e quanto os considera seus amigos. E isso certamente não é
pelas virtudes desses: o covarde Pedro, o traidor Judas, os violentos filhos de
Zebedeu, o corrupto Mateus e os outros que nada entendiam por mais que ele
explicasse.
Ser amigo é assim. É amar pelo que o outro é,
com virtudes e defeitos. E por isso é tão bela a amizade, ungida
inclusive pela vivência e ensinamento do Filho de Deus Encarnado. Amigos
devem ser os cônjuges senão nada sobrará da ardente paixão dos primeiros
tempos. E os namorados, para que o namoro dure e se transforme em união
durável. E os pais, porque senão os filhos crescem e vão querer partir e
não dar mais notícias. E os irmãos, senão no momento da herança se engalfinharão
de maneira lamentável.
E os simplesmente amigos... bênção maior da vida,
que são como casa que se faz aos poucos, tesouro a se guardar debaixo de sete
chaves, alguém com quem contar em qualquer momento, mão estendida quando todos
se foram.
Bendito seja Deus pela amizade. E benditos os
amigos que ao longo da vida me amam como sou e não como desejariam que eu
fosse. Obrigada de coração a todos vocês. E vocês sabem que podem
contar comigo. Sempre... Para o que der e vier.
A teóloga
é professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo
– Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora
Rocco.
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