Por
Marcelo Barros
Finalmente
saiu a encíclica do papa sobre ecologia. Nos Estados Unidos, congressistas
republicanos e seus candidatos à presidência tinham feito pressão para que o
papa não a publicasse.
Há
alguns meses, grandes empresários e donos de mineradoras, espalhadas por todos
os continentes, fizeram um retiro espiritual no Vaticano para mostrar ao papa
que as mineradoras são ecológicas e só extraem minérios da terra. Não a
destroem. Mesmo alguns cardeais norte-americanos, mais ligados aos senhores do
mundo do que aos pobres, expressaram seus receios. Tentaram impedir que, ao
falar de Ecologia Ambiental, o papa pusesse o dedo na chaga e tocasse na
Ecologia Social. No entanto, toda pressão, de dentro da própria Igreja e de
fora, foi inútil. A encíclica saiu,
poética e profética. Começa por retomar o Cântico
das Criaturas de São Francisco para confirmar: “a nossa casa comum é como
uma irmã, com a qual compartilhamos a existência e é como uma mãe que nos acolhe
nos braços” (n. 1). A partir daí, formula o convite insistente a todos para
renovar o diálogo sobre o modo como estamos construindo o futuro do planeta”
(n. 14).
No
método latino-americano do “ver, julgar e agir”, o papa tratou da Ecologia a
partir da realidade social do mundo, da injustiça do sistema econômico
excludente dos pobres e da cultura da indiferença que infesta a
humanidade. Isso mostra que é importante
ler a encíclica Lodato Sii a partir da realidade do mundo dos pobres,
maiores vítimas da injustiça eco-social provocada pelo sistema que domina o
mundo e que também oprime a Terra e a natureza.
O
Brasil é um dos países onde as contradições entre um modelo de desenvolvimento
predatório e a responsabilidade com a terra, nossa casa comum, se manifestam de
modo mais forte.
Conforme
dados divulgados pelo jornalista Washington Novaes, no Brasil, mais de 1,26
milhão de quilômetros quadrados de 1.440 municípios de oito Estados nordestinos
e do norte de Minas Gerais já mostram algum nível de desertificação. O processo
de degradação do solo é muito forte, juntamente com a perda da cobertura
vegetal, da biodiversidade e da capacidade de produção da agropecuária. E como
mostra o papa em sua encíclica, toda vez que a vulnerabilidade da terra não é
respeitada, os que mais sofrem são os pobres. Nas áreas brasileiras que estão
em processo de desertificação, a presença de “pobres e indigentes
é superior à proporção em outras regiões do país. Na verdade, Caatinga e
Cerrado têm 85% dos pobres no País (Cf. Eco 21, abril de 2015).
Essa
realidade afeta o abastecimento doméstico de água e de alimentos. Por causa da
crise da água, em Alagoas, mais de cem mil pessoas estão sendo socorridas para
o abastecimento doméstico. No Ceará, pela falta d’água, agricultores perderam
de 80% a 90% das safras de milho e feijão (Cf. Remabrasil, 6/5).
A
leitura da encíclica do papa Francisco deve nos fazer lembrar dos povos
indígenas do Brasil, ameaçados em sua existência como os nossos ecossistemas
mais preciosos.
Atualmente,
o Brasil tem 820 mil índios, uma pequena parcela da população brasileira, mas
com a qual temos uma imensa dívida histórica, social e ecológica. E assim como
a terra e toda a natureza, em todas as regiões do Brasil, em um ano, os
assassinatos de índios cometidos por madeireiros e grilheiros de terra teve o
aumento de 42% (138 casos). No mesmo período e pelo mesmo motivo, os suicídios
de índios adolescentes e jovens atingiu 135 registros, um recorde em três
décadas. É a partir dessa realidade que, nós, brasileiros, principalmente
cristãos/ãs das diversas Igrejas, somos chamados a ler e interpretar a
encíclica do bispo de Roma sobre a ecologia. Ele nos propõe aprofundar uma
educação e espiritualidade ecológica (n. 202 ss), ou seja, nos formar para a
aliança entre o ser humano e o ambiente (n. 209). Isso não se fará sem uma
verdadeira “conversão ecológica” (n. 216).
Um
documento dos missionários combonianos do Nordeste afirma: “Sabemos quanto o
sistema capitalista, ecocida e suicida, herdou da cultura religiosa cristã. Por
outro lado, temos a inspiração radicalmente evangélica de São Francisco e o
testemunho vivo de muitos e muitas mártires que nos relançam em defesa da vida.
Precisamos igualmente de um profundo e humilde processo de conversão e
purificação. Uma nova escuta da Revelação, a partir do encontro fecundo entre a
Palavra bíblica, o livro da criação e a sabedoria dos povos e das religiões”. Ler
a encíclica a partir dos empobrecidos e da realidade do nossos país nos convoca
para o que o papa chama de “Ecologia integral”.
Nosso
irmão Leonardo Boff declara que nem a ONU conseguiu sintetizar tão bem essa
proposta. Agora, temos de tirar as consequências: a partir das bases,
reelaborar uma maneira de viver e expressar a fé que seja libertadora,
pluralista (isso é, aberta à colaboração com outras tradições espirituais) e holística,
ou seja, baseada em uma justiça eco-social que una o cuidado com a libertação e
com a vida dos oprimidos à comunhão efetiva e espiritual ao universo,
sacramento de uma presença da qual somos testemunhas e colaboradores. Como diz
o cântico de entrada da Missa de Pentecostes: “O Espírito de Deus, o universo todo encheu,
tudo abarca em seu saber, tudo enlaça em seu amor, aleluia” (inspirado no
versículo bíblico do livro da Sabedoria 1, 7).
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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