por Maria Clara Lucchetti Bingemer
É
com uma exclamação de louvor que começa a nova encíclica do Papa Francisco, que
trata de ecologia e o cuidado da casa comum a todos que é o planeta
Terra. “Laudato Sí”, Louvado seja! E quem Francisco – o de Assis – quer
louvar com tanta devoção e entusiasmo é Deus, o Criador de todas as coisas, que
nos deu a terra como habitação, morada, casa, para desfrutar e cuidar.
Assim, a encíclica já em seu primeiro parágrafo desconcerta aqueles que dela
esperavam uma reflexão denunciante, como em geral o são os
documentos sociais da Igreja. Sem deixar de trazer uma reflexão profunda
e que não teme tocar em feridas e pontos dolorosos, Francisco – o de Roma –
toma como inspiração primeira o grito de júbilo de seu xará, o Poverello de
Assis, para louvar o Senhor que é capaz de criar tanta beleza e pô-la à nossa
disposição, ora como “uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma
boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. “ (n. 1)
Há muito não se vê um documento que desperte tal interesse e acolhida positiva
em todos os setores, sejam eles religiosos ou não. A última encíclica do
Papa Francisco move corações e mentes, e é louvada mesmo por intelectuais ateus
e sem fé. Assim, Edgard Morin, o famoso pensador francês, a considera
providencial sobretudo em um momento de “deserto do pensamento” como o que
vivemos. Ou Leonardo Boff, cuja reflexão sobre a ecologia certamente muito
inspirou o texto papal.
É verdade que o Pontífice argentino oferece à Igreja e ao mundo uma reflexão
notável pela sua solidez, sua visão de longo alcance, sua capacidade de
integrar uma enorme complexidade e mostrar caminhos de esperança e equilíbrio
às novas gerações. Neste sentido, a encíclica, que já suscitava grande
expectativa antes de seu lançamento, superou-a trazendo contribuições
inesperadas e de uma amplidão surpreendente.
E começa por identificar terra e humanidade. Nós somos terra, pó,
barro. Nossa corporeidade é formada pelos elementos que constituem o
planeta: a argila, da qual Deus formou Adão, a água que mata a sede, o ar que
enche nossos pulmões e nos mantém vivos. Somos terra, argila sobre a qual
é soprado o espírito divino que anima e inspira. A partir daí, o texto propõe
uma ecologia integral, como foi a vivida por Francisco de Assis. Esta
requer uma abertura para categorias que transcendem a linguagem apenas das
ciências ditas “duras” e nos põem em contato com a mais profunda identidade do
ser humano.
E como as identidades humana e natural se entrelaçam e interagem, a exemplo do
santo de Assis, nossa presença em meio ao criado deve ser de irmandade,
fraternidade e gerar uma atitude não predatória, não de arrogância e dominação,
mas de cuidado. Todas as coisas criadas, todas as criaturas devem ser tratadas
e chamadas de irmãos e irmãs, e provocar em nós atitudes de desvelo e
reverência, afeto e carinho. Por isso, a primeira atitude que brota incontida
do coração humano ao contemplar a criação só pode ser a do louvor jubiloso:
“Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas!”
No entanto, inseparável desta visão maravilhada diante da criação que deve ser
cuidada com desvelo e atenção, está o alerta do texto pontifical contra a
atitude consumista e predatória com que o planeta é tratado pelas grandes
potências e governos irresponsáveis. A principal preocupação do Papa é
não separar sob pretexto algum o compromisso em favor do meio ambiente e o
engajamento em favor dos pobres.
O documento é quase exaustivo quando enumera todos os sofrimentos e desgraças
que a depredação do meio ambiente traz aos pobres. Há uma longa e
minuciosa reflexão sobre a poluição da água, com a qual os pobres se
desalteram, da qual extraem os peixes que lhes servem de alimento, que lhes
possibilita viver da agricultura e do cultivo, até as doenças que as águas
poluídas trazem, provocando epidemias e morte. Igualmente se seguem na
reflexão papal a exposição dos mais vulneráveis do planeta aos poluentes
atmosféricos que lhes causam sérios danos à saúde, e a degradação das condições
de vida dessas populações que as forçam a emigrar, instituindo um círculo
vicioso que leva à destruição das famílias e a perda fatal da qualidade de vida
e da sobrevivência.
Por isso, o documento pontifício propõe
uma nova ideia de progresso, não centrado sobre uma arrogante onipotência do
ser humano, que se arroga o direito de agredir o planeta que habita,
esquecendo-se de que é a casa comum de todos. Mas um progresso com um
desenvolvimento holístico e ecologicamente sustentável, que seja o ato fundante
de uma nova civilização.
Francisco, com seu olhar inspirado pela
fé, vê a humanidade como uma família, “a única família humana”. Essa visão não
permite isolamentos, alienações ou a globalização da indiferença diante do
imenso problema que a degradação do meio ambiente representa para as futuras
gerações. Apenas um olhar e uma atitude “franciscanos” – de cuidado, de
responsabilidade, de reverência – por este planeta, que é nossa casa comum,
pode levar à exclamação de plenitude vital que é o louvor ao Senhor Criador de
todas as coisas. Só pode exclamar “Louvado seja” com os olhos voltados para o
alto quem olhou ao seu redor e curvou-se para cuidar da mais humilde
criaturinha saída das mãos de Deus.
A teóloga
é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo
de descrença” (Rocco).
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