por Maria Clara Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A chegada do Papa Francisco representou para a Igreja latino-americana um
renascer, uma nova primavera. Algo assim toma lugar no catolicismo
latino-americano. A memória de grandes líderes dessa Igreja está sendo
revivida e honrada; o sacrifício de tantos bispos, padres e leigos, mortos sob
ditadura militar, vai sendo reconhecido e venerado; e alguns teólogos, outrora
acusados de heresia, são resgatados e valorizados.
O primeiro papa latino-americano tem dado à Igreja do seu continente cidadania
e reconhecimento dentro da Igreja universal. O clima existente antes de
sua eleição – de desânimo, desesperança – cede lugar a uma alegria e um
entusiasmo novos. E um dos primeiros sinais é justamente a valorização da
Igreja latino-americana, que parecia haver sido posta um tanto à sombra em anos
anteriores.
A teologia da libertação, que parte da opção pelos pobres, foi novamente
legitimada e vários de seus pioneiros, como Gustavo Gutiérrez, reconhecidos e
consultados pelo Papa.
A igreja na América Latina revisita seu passado com um santo orgulho. A
memória deste passado é estimulante e provoca a criatividade, desencadeia
processos transformativos e dinâmicas de vida. Esta Igreja, que tanto
contribuiu para que algo novo nascesse e brilhasse na história do cristianismo,
apresentou a mais original e válida recepção do Concílio Vaticano II. Por
isso, foi muitas vezes incompreendida. Agora parece terem passado esses
tempos duros. O novo Papa lhe abre as portas e a mostra positivamente ao mundo.
Este passado, que conta com uma fértil e abundante produção teológica e é
selado pelo testemunho de muitos mártires e confessores, continua a iluminar
aqueles que não se conformam com este mundo tal qual é, e desejam ardentemente
construir algo novo. A memória do que foi construído pela Igreja
latino-americana nos anos 1970 e 1980 é perigosa e subversiva, provoca sempre
pessoas e comunidades a viverem na verdade e não fazerem concessões à
injustiça. Seu resgate pelo atual pontificado demonstra que nenhum poder
ou opressão poderá fazê-la desaparecer.
A prova é o que acontece neste momento. Não apenas as opções principais
desta Igreja – pelos pobres, pela justiça – ainda estão vivas e influenciando
as pessoas, mas também o magistério da Igreja, na pessoa do Papa, está trazendo
à luz novamente e de forma positiva toda esta história de maneira mais que
evidente. Assim, as vítimas não são esquecidas, os pobres não são
excluídos do pensar teológico como prioridade, mas ao contrário, estão
presentes sempre inspirando e movendo os esforços teológicos de hoje.
Ao
lado disso, este passado foi capaz de gerar um presente criativo e
dinâmico. Os momentos difíceis vividos ao sul do Equador, no final dos
anos 1980 e nos anos 1990, não levaram a Igreja latino-americana a uma posição
derrotista. Mas ao contrário, fez com que esta alargasse seu olhar e
fosse em busca de outros temas para sua pesquisa e reflexão. Permanecendo
fiel aos pobres e ao povo crente e simples, criou novas áreas por onde a
reflexão teológica pode caminhar.
Hoje, a
teologia do continente se ocupa de outras pobrezas além da
socioeconômica. São pobrezas antropológicas, como a questão da ecologia e
do cuidado com o planeta, do gênero, do diálogo inter-religioso. No
entanto, tais temas vêm sempre conectados com as opções centrais que sempre
foram as da Igreja latino-americana pós conciliar: libertação de todos os tipos
de opressão, luta contra a exclusão e as discriminações de toda ordem – raça,
etnia, sexo etc. – e contra toda forma de dominação e preconceito.
Trata-se
de um momento abençoado e raro, em que as forças e as energias teológicas de
todo o continente são convocadas a dar o melhor de si. Neste tempo que já
configura várias décadas, a pobreza, a violência, as discriminações, não
diminuíram, mas aumentaram. Cabe então a uma Igreja que cunhou a
libertação como palavra de ordem continuar, e mais intensamente ainda, a
colocar sua reflexão a serviço dessa causa.
Nesta nova
primavera, a teologia latino-americana respira liberdade. Que saiba
usá-la para um serviço sempre maior ao povo de Deus, dentro desta Igreja que
sempre amou e à qual sempre foi fiel.
A
teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus
em tempo de descrença”, Editora Rocco.
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo
– Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora
Rocco.
Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER –
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