Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
E mais uma vez a Igreja celebra a festa de
Corpus Christi. Nela, toda a comunidade eclesial se reúne
para louvar a eucaristia, mistério maior da vida eclesial, que proclama que o
pão que partimos e o vinho que bebemos são real e indubitavelmente o corpo e o
sangue de Jesus Cristo transubstanciados, feitos ''outra'' substância pela ação
do Espírito Santo.
Essa substância ''outra'',
radicalmente diferente das humildes aparências do trigo e da uva, são para a fé
cristã a própria pessoa do Senhor que se dá em alimento ao povo. Antes de sua
morte, Jesus deixou como testamento a seus discípulos e amigos o dom maior da
entrega de sua vida nos sinais do pão e do vinho, com os quais celebra sua
última ceia. Por não querer permanecer longe daqueles e daquelas a quem amava
ardentemente, Jesus deixa a si mesmo, sua pessoa, sua vida como alimento que
será a força e a vida do povo que é seu e que o Pai lhe deu desde toda a
eternidade. Essa foi a forma amorosa e sublime que o Filho de Deus escolheu
para fazer-se presente para sempre em meio aos seus, sendo-lhes sustento,
comida e bebida.
Porém, há uma outra forma
de presença de Deus no meio de nós que a festa de Corpus Christi nos faz
irresistivelmente recordar. Trata-se da corporeidade do outro, da pessoa do
semelhante, do sacramento do irmão. O Cristo que comemos e bebemos na
eucaristia é o mesmo que está presente no outro que, diante de nós, é seu
sacramento, sua epifania. Comer o corpo e beber o sangue do Senhor implicará,
portanto, cuidar, reverenciar, respeitar e servir com todo amor, com todas as
forças e com toda verdade o corpo do outro que diante de mim revela a presença
do Senhor.
Implica sobretudo fazer-se
responsável pelo corpo do outro mais carente: do pobre, do órfão, da viúva, do
infeliz, do doente, do preso. Cuidar para que nada atinja esse corpo significa
lutar para que nada impeça a vida de florescer ali, em plenitude, pois ali está
sacramentalmente presente o corpo de Cristo. Parece-me que o momento que
vivemos hoje em nossa cidade, nosso país e nosso mundo é propício e instigante
para fazer-nos refletir sobre como temos tratado o corpo de Cristo presente e
vivo no outro. As bárbaras cenas de violência que temos presenciado
ultimamente, e que a televisão e a internet não cessam de brindar-nos, no
Oriente Médio, na Líbia, no Iraque ou bem perto, na bela Lagoa Rodrigo de
Freitas onde a vida é banalizada e vidas ceifadas com barbárie, confirmam a
banalização que a vida humana vem sofrendo nestes últimos tempos.
Tudo isso nos chama a
atenção para o fato de que a corporeidade humana - lugar da dignidade e ao
mesmo tempo da vulnerabilidade do ser humano - vem sendo sistemática e
violentamente profanada. A festa de Corpus Christi nos recorda a dignidade de
nossa condição humana, feita de um corpo animado pelo espírito divino. Essa
carne frágil e mortal que é a nossa, criada por Deus, foi assumida pelo próprio
Deus na encarnação de Seu Filho no tempo e no espaço.
Jesus, ao dar sua carne
para a vida do mundo e deixar-nos seu corpo e seu sangue em alimento, está ao mesmo
tempo dizendo-nos qual deve ser nossa atitude diante do corpo nosso e dos
outros: respeito e cuidado, delicadeza e proteção, carinho e desvelo. Nunca
violência, ataque, brutalização.
A festa de Corpus Christi
nos relembra igualmente que se agredimos o irmão, se desrespeitamos o corpo que
é semelhante àquele que foi assumido pelo próprio Deus, estamos nos exilando
irremediavelmente da comunhão com esse Deus e com seus filhos. Aproximar-se da
mesa eucarística para receber o corpo e o sangue de Jesus Cristo, deixando
atrás de si um rastro de morte, destruição ou mesmo de omissão e conivência com
a violência que assola a cidade, o país e o mundo, é uma escandalosa
contradição.
De nada adianta acompanhar
a procissão e pisar nos tapetes de flores que enfeitam as cidades brasileiras
que se engalanam para louvar o Santíssimo Sacramento; de pouco serve
inclinar-se, cantar e aplaudir à sua passagem, se o Corpo de Cristo continua a
ser agredido e profanado em nossas casas, ruas, cidades e caminhos. A festa que
celebramos é uma boa ocasião para iniciarmos um processo de profunda conversão.
Todos nós, das autoridades governamentais aos mais simples cidadãos, somos
interpelados pela festa do Corpo de Cristo, que nos remete irremissivelmente ao
corpo dos outros, de cuja guarda fomos feitos responsáveis.
A teóloga é
autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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