por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora
do departamento de Teologia da PUC-Rio
Vejo aterrorizada a notícia do
fechamento da livraria La Hune, em Paris, no Boulevard Saint Germain. Fundada
logo após a Segunda Guerra por intelectuais franceses da Resistência, dará
lugar a um comércio de reproduções fotográficas.
Não é a primeira vez que a livraria se
encontra ameaçada. Em 2012, teve que deixar sua sede histórica, no
próprio Boulevard Saint Germain, e foi transferida para o nº 18 da
rue de l´Abbaye. Ali agora reina a grife Louis Vuitton. É um
sinal que explica a progressiva diminuição do mito literário e sua substituição
pelo comércio de luxo que vende “nada”: ar, cheiro, perfume, malas e bolsas
caríssimas que pouca gente consegue comprar.
No lendário Boulevard Saint Germain só
fica agora uma livraria, “L´écume des pages” (A espuma das páginas), cujo lindo
nome soa como um presságio: a de que em breve ali só restará espuma e nada mais
consistente.
Porém, Paris é Paris. E são
tantas as livrarias lá existentes que o hábito de leitura de seus habitantes
não será gravemente afetado pelo desaparecimento da La Hune.
Em muito pior situação está o Rio de Janeiro, que neste momento de seus 450
anos está perdendo nada menos do que a icônica e paradigmática livraria
Leonardo da Vinci. Depois de 63 anos de várias lutas e batalhas para
se manter viva, a Da Vinci fecha as portas.
Fundada pelo romeno Andrei Duchiade,
hoje pertence à sua filha Milena. Foi dela a triste decisão de fechar as
portas. Não aguenta mais operar com prejuízo e em breve o antigo e
histórico edifício Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco, não contará mais
com as estantes povoadas de livros da melhor qualidade como aconteceu por seis
décadas.
A Da Vinci não era simplesmente um
estabelecimento comercial. Era um mundo encantado para quem gostava de
livros e deles vivia. A maravilhosa Dona Vanna, esposa de Duchiade e
grande dama da livraria, mantinha contas abertas para estudantes que só podiam
pagar a prazo, e atendia com a mesma solicitude professores e alunos,
intelectuais de toda espécie e de toda ideologia.
Não existe alguém nesta cidade que
trabalhe com a cabeça e seja medianamente culto que não tenha sido assíduo
frequentador da livraria. E em um tempo em que não existia ainda a Amazon, com
toda a facilidade que representa, a Da Vinci importava livros da França, da Itália,
da Espanha e etc., colocando o preço inclusive em moeda estrangeira.
Ali comprei muitos de meus livros de
teologia quando ainda era estudante de graduação. E quando fazia ocurso
da Aliança Francesa era dona Vanna que mandava buscar na França as edições de
que necessitava para me preparar para os exames da Universidade de Nancy.
Golpeada pelo surgimento massivo das
lojas virtuais e das megalivrarias, a Da Vinci recebeu a pá de cal com as obras
que proliferam no Centro da Cidade e as manifestações que inundaram o Rio desde
2013.
A partir deste mês de junho de 2015,
portanto, os intelectuais cariocas ficam mais pobres e – pior ainda –
órfãos. Órfãos de um lugar que os acolhia e era muito mais que um
balcão de compra e venda de livros, mas um ninho, onde o prazer era folhear,
buscar, desejar, suspirar e adquirir na medida de suas possibilidades. Um
centro irradiador de saber, que acolhe o saber com prazer e estímulo.
A cidade perde um pouco de sua mente,
de seu espírito, de sua alma, com o fechamento desta livraria, que ainda não
encontrou equivalente em nosso perímetro urbano. Fica, decididamente,
mais pobre, em um momento em que o empobrecimento abrange tantas áreas e
dimensões.
Um Rio sempre belo, porém mais
violento, mais inseguro, mais sujo, menos apetecível aos passeios a pé e onde
até o ar livre é menos livre, pois o preço a pagar para desfrutá-lo começa a
ser alto demais. Às vezes, equivalente à própria vida. Este é o Rio que
festeja discreta e pudicamente seus 450 anos.
Porém, quando livrarias começam a
fechar, e sobretudo uma Da Vinci, a situação piora. O clima torna-se mais
ameaçador, com um tom de Fahrenheit 451, o grande romance de Ray Bradbury, que
apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são
consideradas não gratas e o pensamento crítico é perseguido e eliminado. O
número 451 refere-se à temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel,
que equivale em Celsius a 233 gruas.
A saída que o romance propõe é as
pessoas virarem livros vivos e perpetuarem assim a criação livre, a magia e a
beleza da cultura. Oxalá os cariocas, com o desaparecimento de livrarias
como a Leonardo Da Vinci, revejam suas prioridades e passem a encarnar livros,
palavras, pensamentos e saberes que são o único alimento verdadeiramente humanizador.
Se assim não for, o futuro é
triste. Triste da cidade que fecha livrarias, esfaqueia ciclistas
inocentes, multiplica exponencialmente o número de crianças na rua, e impede a
vida de brotar e florir livremente. Mais triste será o Rio sem a Da
Vinci. Tomara que essa tristeza conheça uma ressurreição marcada por
desconhecida mas forte alegria.
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha
dapaixão e da compaixão" (Edusc)
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