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sexta-feira, 19 de junho de 2015

QUANDO LIVRARIAS FECHAM AS PORTAS

por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do departamento de Teologia da PUC-Rio



Vejo aterrorizada a notícia do fechamento da livraria La Hune, em Paris, no Boulevard Saint Germain. Fundada logo após a Segunda Guerra por intelectuais franceses da Resistência, dará lugar a um comércio de reproduções fotográficas.

Não é a primeira vez que a livraria se encontra ameaçada.  Em 2012, teve que deixar sua sede histórica, no próprio Boulevard Saint Germain, e foi transferida para o nº 18 da rue de l´Abbaye. Ali  agora reina a grife Louis Vuitton.  É um sinal que explica a progressiva diminuição do mito literário e sua substituição pelo comércio de luxo que vende “nada”: ar, cheiro, perfume, malas e bolsas caríssimas que pouca gente consegue comprar.

No lendário Boulevard Saint Germain só fica agora uma livraria, “L´écume des pages” (A espuma das páginas), cujo lindo nome soa como um presságio: a de que em breve ali só restará espuma e nada mais consistente.

Porém, Paris é Paris.  E são tantas as livrarias lá existentes que o hábito de leitura de seus habitantes não será gravemente afetado pelo  desaparecimento da La Hune.  Em muito pior situação está o Rio de Janeiro, que neste momento de seus 450 anos está perdendo nada menos do que a icônica e paradigmática livraria Leonardo da Vinci. Depois de 63 anos de várias  lutas e batalhas para se manter viva, a Da Vinci fecha as portas.

Fundada pelo romeno Andrei Duchiade, hoje pertence à sua filha Milena.  Foi dela a triste decisão de fechar as portas.  Não aguenta mais operar com prejuízo e em breve o antigo e histórico edifício Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco, não contará mais com as estantes povoadas de livros da melhor qualidade como aconteceu por seis décadas.

A Da Vinci não era simplesmente um estabelecimento comercial.  Era um mundo encantado para quem gostava de livros e deles vivia.  A maravilhosa Dona Vanna, esposa de Duchiade e grande dama da livraria, mantinha contas abertas para estudantes que só podiam pagar a prazo, e atendia com a mesma solicitude professores e alunos, intelectuais de toda espécie e de toda ideologia.
Não existe alguém nesta cidade que trabalhe com a cabeça e seja medianamente culto que não tenha sido assíduo frequentador da livraria. E em um tempo em que não existia ainda a Amazon, com toda a facilidade que representa, a Da Vinci importava livros da França, da Itália, da Espanha e etc., colocando o preço inclusive em moeda estrangeira.

Ali comprei muitos de meus livros de teologia quando ainda era estudante de graduação.  E quando fazia ocurso da Aliança Francesa era dona Vanna que mandava buscar na França as edições de que necessitava para me preparar para os exames da Universidade de Nancy.

Golpeada pelo surgimento massivo das lojas virtuais e das megalivrarias, a Da Vinci recebeu a pá de cal com as obras que proliferam no Centro da Cidade e as manifestações que inundaram o Rio desde 2013.

A partir deste mês de junho de 2015, portanto, os intelectuais cariocas ficam mais pobres e – pior ainda – órfãos.  Órfãos de um lugar que os acolhia e era muito mais que um balcão de compra e venda de livros, mas um ninho, onde o prazer era folhear, buscar, desejar, suspirar e adquirir na medida de suas possibilidades.  Um centro irradiador de saber, que acolhe o saber com prazer e estímulo.

A cidade perde um pouco de sua mente, de seu espírito, de sua alma, com o fechamento desta livraria, que ainda não encontrou equivalente em nosso perímetro urbano.  Fica, decididamente, mais pobre, em um momento em que o empobrecimento abrange tantas áreas e dimensões. 

Um Rio sempre belo, porém mais violento, mais inseguro, mais sujo, menos apetecível aos passeios a pé e onde até o ar livre é menos livre, pois o preço a pagar para desfrutá-lo começa a ser alto demais.  Às vezes, equivalente à própria vida. Este é o Rio que festeja discreta e pudicamente seus 450 anos.

Porém, quando livrarias começam a fechar, e sobretudo uma Da Vinci, a situação piora. O clima torna-se mais ameaçador, com um tom de Fahrenheit 451, o grande romance de Ray Bradbury, que apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas não gratas e o pensamento crítico é perseguido e eliminado. O número 451 refere-se à temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, que equivale em Celsius a 233 gruas.

A saída que o romance propõe é as pessoas virarem livros vivos e perpetuarem assim a criação livre, a magia e a beleza da cultura.  Oxalá os cariocas, com o desaparecimento de livrarias como a Leonardo Da Vinci, revejam suas prioridades e passem a encarnar livros, palavras, pensamentos e saberes que são o único alimento verdadeiramente humanizador.

Se assim não for, o futuro é triste.  Triste da cidade que fecha livrarias, esfaqueia ciclistas inocentes, multiplica exponencialmente o número de crianças na rua, e impede a vida de brotar e florir livremente.  Mais triste será o Rio sem a Da Vinci.  Tomara que essa tristeza conheça uma ressurreição marcada por desconhecida mas forte alegria.
  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha dapaixão e da compaixão" (Edusc)    
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