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quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

EU TIVE UM SONHO QUE DUROU DEZ DIAS...


Por Reginaldo Veloso
Qualquer semelhança com o frevinho clássico e gostoso de cantar, não é mera coincidência. De fato, “eu tive um sonho que durou”, de certa maneira, dez dias, e que, também, “foi um sonho lindo, sonho encantador”... Sonhei que chegava ao Morro da Conceição, numa noite de 29 de novembro, para assistir a chegada da “Bandeira”, isto é, para a abertura do Novenário anual em honra da Imaculada Conceição da Mãe do Senhor Jesus.
E o Morro era um brilho só. Não apenas pela iluminação esplendorosa de toda a praça, mas, sobretudo, pelo que mais me enchia a vista, e tinha a ver com a minha devoção à Mãe de Jesus. Eram balões que pontilhavam todo o perímetro da praça, cada um contendo uma lembrança significativa da figura de Maria, colhida nas páginas das Sagradas Escrituras.
Eram precisamente, 24 balões, doze de um lado e doze do outro, os quais de para em par, traziam doze referências bíblicas que ilustravam bem, quem foi e quem continua sendo esta Mulher. Não tanto alguém de uma grandiosidade imensa, quase uma deusa, ao lado da Santíssima Trindade. Nem tanto uma protetora onipotente frente a qualquer problema da vida, dispensando mesmo a proteção de Deus. Mas, simplesmente, MARIA, semente, modelo, referência, ícone e inspiração da Igreja. Olhando para Maria, tal como no-la apresentam as páginas do Evangelho, nós, como se estivéssemos diante de um espelho, saberemos exatamente como a comunidade cristã tem que ser. Como cada cristão, cada cristã tem que ser. Pelo menos, para ser Igreja do jeito que Deus quer, que Jesus, filho de Deus e de Maria, quer que a gente seja.
Acertadamente, já os dois primeiros balões, um do lado e outro do outro da praça, diziam: <<EIS AÍ TUA MÃE! (João 19,26)>>. E era um convite a todo mundo olhar para ela, com certeza, não apenas para admirá-la, mas, sobretudo, para imitá-la...
Os dois seguintes, de um lado e do outro, rezavam: <<AVE, CHEIA DE GRAÇA! O SENHOR ESTÁ CONTIGO! (Lucas 1,28)>>. E era, para cada devoto, cada devota, que ia chegando ao Morro, sentir-se saudado pelo mesmo Anjo que saudou a Maria. E sentir, como ela, a presença mais confortante: Deus está com a gente, como esteve com ela! Eu olhava pros balões e olhava paras pessoas que iam caminhando pela praça comigo, e me perguntava se sentiam o mesmo que eu sentia...
Mais adiante, dois outros balões traziam essa frase lapidar de Maria: <EIS A SERVIDORA DO SENHOR! FAÇA-SE EM MIM SEGUNDO A TUA PALAVRA! (Lucas 1,35)>>. E era para a gente se questionar: “Será que estamos à disposição de Deus, da sua vontade, tanto quanto ela, pro que der e vier?”... O que será que entendiam as pessoas que iam lendo essas palavras?...
Logo depois, vinham outros dois balões, com uma inscrição mais longa. Por isso, as letras eram mais pequenas, mas dava para ler bem: <<BENDITA ÉS TU ENTRE AS MULHERES! BENDITO É O FRUTO DO TEU VENTRE! (Lc 1,42)>>. Era a saudação de Isabel. E eu pensava comigo mesmo: como seria bom que, cada mãe cristã, chegando ao Morro, se sentisse elogiada, se sentisse igualmente, “bendita”, ao tomar consciência de que os filhos e as filhas que dela nasceram, foram por ela criadas e educadas pra serem outras tantas presenças de Jesus Cristo neste mundo... Eu olhava para o semblante das mães que caminhavam comigo, e bem gostaria de ter a certeza de tudo isso. Aliás, era para toda a Igreja, cada Comunidade Cristã, se questionar: “Do jeito que estamos sendo Igreja hoje, aqui em nosso país, a gente mereceria o mesmo o elogio de Isabel?... Estamos, realmente, merecendo o elogio que Maria recebeu de Isabel?... Estamos, verdadeiramente, comunicando JESUS ao mundo, o Jesus dos Evangelhos?...
Em seguida, em dois outros balões, apenas essas palavras: <<BEM-AVENTURADA AQUELA QUE ACREDITOU! (Lc 1,45)>>. Isabel estava felicitando a prima, futura Mãe do Messias. Quem de nós que estávamos lendo, naquele momento, aquela frase, além de admirar a fé de Maria, se sentia de alguma modo incluído naquela felicitação?... A ousadia da fé de Maria, que deveria estar sendo a ousadia da fé da gente, estava nos engajando na caminhada de todo o povo que luta por dias melhores, por um país justo, igual, fraterno, feliz, tanto quanto Maria, nos caminhos do seu Filho, pelas estradas da Palestina, anunciando a Boa Nova do Reino?...
<<A MINH’ALMA PROCLAMA A GRANDEZA DO SENHOR! (Lc 1,46)>>, era o que se lia no sexto par de balões. Era a primeira frase do Cântico de Maria. E eu, enquanto caminhava com toda aquela gente, vibrava com Maria. Como ela, eu pensava no que havia aprendido da vida até aqui, e não poderia ter outro sentimento, dizer outra coisa. Imagino que muita gente que ia naquela procissão, lendo estas palavras, vibrava do mesmo jeito: DEUS É MAIS!
<<ELE OLHOU PARA A HUMILHAÇÃO DE SUAS SERVIDORA... E REALIZOU GRANDES COISAS EM MEU FAVOR! (Lc 1,49)>>, eram os dizeres dos sétimo par de balões. Quanta gente caminhando Morro acima! A maioria, trabalhadores, trabalhadoras, gente do meio popular, gente pobre, sacrificada... Quantos, quantas de nós se sentiriam igualmente olhados, olhadas, por Deus?... Quantos, quantas, diante de tantas humilhações e necessidades que passamos, acreditavam que Deus poderia realizar grandes coisa em favor da gente?... E bastaria que a gente tivesse a fé, a ousadia, a capacidade de entrega da Mãe de Jesus, no seguimento do seu Filho...
<<ELE DERRUBA OS PODEROSOS DE SEUS TRONOS E LEVANTA OS HUMILHADOS! (Lc 1,52)>>, será que toda esta gente devota que sobe o Morro é tão subversiva quanto parece ter sido a Mulher que cantou este Cântico?... Era o que eu me perguntava, ao ler, dum lado e no outro, no oitavo par de balões, esse verdadeiro grito de guerra.
<<ELE ENCHE OS FAMINTOS DE BENS E MANDA EMBORA OS RICOS DE MÃOS VAZIAS! (Lc 1,53)>>. Acredito que muita gente, ao ler as palavras do nono par de balões, deve ter se perguntado: depois de tanto tempo que Maria cantou estas palavras, porque será que ainda existe tanta fome, tanta desigualdade?... E as pessoas mais informadas sabem que essa injustiça acontece sobretudo nos países de “cultura cristã”... E eu me questionava: será que dessa festa toda a gente vai sair mais consciente do Projeto de Deus, mais comprometida com a luta pela justiça?...
O décimo par de balões registravam o que ocorreu na festa do casamento em Caná da Galileia: Maria dizendo pro Filho: <<ELE NÃO TÊM VINHO! (Jo 2,3)>>. No lugar de Maria, a Igreja hoje, cada Comunidade Cristã, todo esse povo que sobe o Morro em devoção, tem esse olhar atento, essa sensibilidade, essa capacidade de se doer e se solidarizar com as necessidades e humilhações porque passa tanta gente?...
<<FAÇAM O QUE ELE MANDAR! (Jo 2,5), essas palavras do décimo primeiro par de balões, não são um simples conselho da “Mãe do Bom Conselho”. São uma ordem, um mandado de mãe. Até que ponto, estas palavras estariam repercutindo no coração de cada um, de cada pessoa que passava e lia?... E Maria, mais que ninguém andou escutando o que dizia seu Filho e levando a sério sua Palavra. E foi fiel a Ele até a cruz. Por isso, mais que ninguém, mereceu o elogio que, finalmente lemos, no décimo segundo par de balões, quando já rodeávamos o monumento da Santa:
<<MAIS FELIZES SÃO AQUELES QUE OUVEM A PALAVRA DE DEUS E A PÕEM EM PRÁTICA! (Lc 11,28)>>. E foi uma pena que os dizeres sendo mais longos, só dava para escrevê-los com letras bem pequenas, embora de mais perto desse para ler bem. Claro que fechavam com chave de ouro. Ah! se o resultado dessa festa toda, que apenas estava começando, fosse todo mundo que dela participa, se tornar gente mais consciente e comprometida com a causa das causas, o REINO DE DEUS! Maria se sentirá realmente honrada e feliz com a gente.
O fato é que eu achei aquilo tudo tão bonito, no meu sonho, que me animei a voltar nas outras oito noites da Novena e, sobretudo, no próprio dia 8, dia da Festa! Mas, quando pipocavam os fogos com a chegada da procissão e do belo andor da Santa, no dia 8, encerramento dos dez dias de festa, eu me acordei.
O fato é que, força desse sonho, eu subi hoje, ancho de esperança e curiosidade, para ver como estava o Morro. E qual não foi a minha surpresa! Sabem o que encontrei?... Tudo, menos o que no sonho eu vi. Em vez de 24 belas e fortes mensagens sobre a Mãe de Jesus, o que avistei foram mais de 20 balões com propaganda comercial. E Morro da Conceição, parecia mais o pátio do Shopping Recife ou do Shopping Tacaruna do que o Morro da Imaculada. Vejam só o que se lia nos balões, de par em par, de um lado e do outro:
<<QUALIFICAÇÃO NEESON CENTRAL CURSOS>> - <<JÚNIOR MAGAZINE – CLAÇADOS E CONFECÇÕES>> - <<FACULDADE IMACULADA CONCEIÇÃO DO RECIFE>> - <<PERNAMBUCO DO SABOR>> - <<FRICÇÕES>> - <<K KALDO – O SABOR DA FAMÍLIA>> - <<LOJA DO CONDOMÍNIO>> - <<AUTO ESCOLA PILOTO>> - <<FREITAS BETONEIRAS>> - <<SANTA CLARA (café!)>> - HONDA TENDA CONSÓRCIO>>.
Apenas duas bolas de interesse público: <<BOMBEIRO CIVIL>>, pois, me parece, que, até os dois com os dizeres da Prefeitura do Recife me pareciam mais, propaganda.
Pelo visto, tinha pra todo gosto. Do fundo da minha frustração, porém, emergem algumas perguntas:
- Dessa enxurrada de mensagens comerciais, o que sobra de evangelização, de revelação do Mistério de Maria, no seio do Mistério de Cristo e da Igreja?... Pelo menos, a partir do que enchia os olhos de quem chegava à Praça de N. S. da Conceição, no Morro, nestes dez dias da maior festa religiosa da região?...
- Será desse jeito que a Mãe de Jesus se tornará uma inspiração forte para a mudança de vida das pessoas e da sociedade?...
- Avessos à “Teologia da Libertação”, estarão promovendo a “Teologia da Prosperidade”, a mercantilização da religião, o aproveitamento comercial da religiosidade popular?...
- E essa enxurrada de missas, ao longo da novena, e, sobretudo, no dia da festa, estará servindo mesmo aos objetivos de uma Igreja Discípula-Missionária, à valorização da Eucaristia, à revelação da riqueza evangélica e evangelizadora da pessoa e do testemunho da Mãe do Senhor?... Ou estará sendo outra aberrante utilização mercantil do que há de mais sagrado na religião cristã, execrável banalização do que deveria ser o ponto culminante da vivência comunitária eclesial?...
Não sem razão, quase 30 anos depois de ter sido alijado da nascente Paróquia do Morro, ao sair pelas ruas do bairro, subindo ou descendo o Morro, continuamente, as pessoas que conheceram o estilo de Igreja e de Pastoral que aqui se tentou implementar, há quase 40 anos atrás, me abordam, emocionadas, para dizer-me, enfaticamente, de sua saudade daqueles tempos... Quando, inclusive, a paróquia não precisava vender nada, nem muito menos, se vender aos interesses do Mercado, mas os pequenos comerciantes informais podiam, esses sim, vender suas coisinhas e ganhar uma espécie de suado “décimo-terceiro”, para terminar o ano oferecendo algum mimo ou algum alívio a suas sofridas famílias.
Deus está vendo!
Reginaldo Veloso, presbítero leigo das CEBs
reginaldovelos937@gmail.com


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