Por Frei Betto
O
corpo humano é uma redescoberta recente. Em culturas que precedem o século XX,
o corpo era camuflado pela roupa, o moralismo e a religião. Exceções feitas às
culturas indígenas, que ainda hoje imprimem respeitosa visibilidade ao corpo. E
também à cultura greco-romana, isenta de moralismo antes do advento do cristianismo,
como o descreve Marguerite Yourcenar no romance “Memórias de Adriano”.
A
tradição bíblica não separava corpo e espírito. A cultura ocidental, marcada
pela filosofia de Platão, cinde o ser humano em dois polos antagônicos. Corpo e
espírito são inimigos. E há que escolher um. Os devassos escolhem o corpo,
destinado às chamas do inferno. Os santos, o espírito, elevado aos céus...
Freud
e a física quântica são contemporâneos. Ensinaram-nos que não há corpo como
mero receptáculo da alma. Tudo está intrinsecamente ligado. Somos todos uma
montanha de átomos, base de nossas células, nos quais há mais espaços vazios
que substância material. Nossa “alma” está tanto na unha cortada quanto no fio
de cabelo.
O
século XX desnudou o corpo, embora desde o Renascimento ele tenha sido
exaltado, como exemplifica a pintura de Michelangelo, “A criação de Adão”, no
teto da Capela Sistina.
Agora,
apropriado pelo capitalismo, o corpo é mercadoria submetida à ditatorial
cartografia. Sofre quem não tem o corpo adequado a esta cartografia exposta em
capas de revistas, na publicidade (“Vai verão...”), em filmes, fotos e novelas.
Uma
poderosa indústria, que se estende de academias de ginástica a medicamentos e
dietas miraculosos, fomenta a visibilidade do corpo ideal e penaliza os corpos
que não se enquadram no modelo padrão.
Não
se trata apenas de uma estética imposta a ferro e fogo, e que induz à depressão
quem dela destoa. Trata-se também de uma inversão de Platão. Agora o corpo se
salva, e o espírito desce aos infernos. Entre ser burra ou loura, a opção é
óbvia.
Quem
dera nossas cidades tivessem tantas livrarias e bibliotecas quanto academias de
ginástica! Essa exacerbação física aprofunda a cisão entre espírito e corpo. O
desempenho sexual torna-se mais importante que a densidade amorosa. A velhice
assumida é socialmente execrada. O excesso de peso, ridicularizado.
O
corpo, apropriado pelo sistema, já não nos pertence. O mercado determina qual o
corpo socialmente apreciado e qual o excluído do mercado e, portanto, condenado
ao banimento e à tortura psicológica.
Já
não somos o nosso corpo. Somos a encarnação do corpo sacramentado pelo sistema,
impelidos a jejuar, malhar bastante, submeter-nos à cirurgia plástica. Nada de
nos apresentar sem o corpo-senha que abre as portas do mundo encantado da
jovial esbelteza, no qual nossa cartografia física deve suscitar admiração e
inveja.
Convém
manter a boca fechada, não apenas para evitar engordar. Também para que não
descubram que somos desnutridos de ideais, valores e espiritualidade. Estamos
condenados a ser apenas um pedaço de carne ambulante.
Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
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