por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Os cristãos do mundo inteiro celebraram há poucos dias sua festa maior: a
Páscoa de Jesus de Nazaré, filho de Deus, nascido de mulher, morto sob Pôncio
Pilatos e ressuscitado por Deus, seu Pai, para uma vida plena e sem
término. É a celebração da vitória da vida sobre a morte e a dor, o
triunfo do Bem sobre o Mal, da paz sobre a violência e a injustiça. Todos
que celebramos este momento magno do ano litúrgico ouvimos uma vez mais as
leituras que narram o evento pascal, o qual cremos haver transformado o mundo e
o futuro da humanidade pela afirmação de uma invencível esperança em meio às
vicissitudes da vida.
E, no entanto, em meio aos cantos de alegria e júbilo, soavam gemidos de dor e
tristeza sem fim. Esta Páscoa de 2015 fica indelevelmente marcada pelo
massacre acontecido no Quênia, na cidade de Garissa, durante a Quinta-Feira
Santa. Homens armados do grupo radical islâmico Al Shabab – filial da Al
Qaeda na Somália – invadiram a universidade de Garissa e mataram 148 pessoas, a
maioria deles jovens estudantes e cristãos.
O que se passou dentro das salas de aula e nos dormitórios da universidade é
difícil de imaginar. Os jovens foram separados segundo a religião:
muçulmanos poupados e cristãos mortos sem piedade com um tiro na nuca. Ao
serem indagados se podiam ler em árabe e se conheciam as palavras das orações
muçulmanas, aqueles e aquelas que não as conheciam por pertencerem a outra
religião eram separados para morrer e executados imediatamente.
Houve, porém, os que escaparam milagrosamente, por fingir-se de mortos entre os
inúmeros cadáveres que se acumulavam; ou dentro de um armário, como a jovem
Cynthia, de 19 anos, que ali passou 48 horas, escondida sob as roupas e bebendo
loção corporal para matar a sede. Todos esses puderam narrar em primeira pessoa
o que foram aquelas horas de terror.
Esses que sobreviveram e seus parentes que chegavam em desespero para saber
notícias dos entes queridos tiveram que esperar várias horas pelo socorro
oficial, da polícia e do exército queniano. A mãe de uma das vítimas levou
cinco dias peregrinando em busca de notícias do filho, para encontrar seu nome
finalmente em uma lista de mortos. No necrotério montado para reconhecer
as vítimas, cenas de desespero se sucediam quando algum corpo era
reconhecido. Algumas pessoas permanecem desaparecidas até hoje.
Cala
fundo o horror do massacre. Impressiona visceralmente a magnitude da
tragédia. Mas talvez a mais intrigante interpelação seja sobre a pouca difusão
que se deu na mídia e nas redes sociais a uma violência de tais
proporções. A reação mundial diante do massacre violento e cruel desses
quase 150 jovens não se compara, por exemplo, à mobilização maciça ocorrida na
França com os ataques ao Charlie Hebdo e a morte de quatro cartunistas.
Não podemos deixar de nos perguntar por
que o silêncio, a escassez de comentários, o quase descaso? Por que
aconteceu na África, continente riscado do mapa das superpotências e condenado
à pobreza e à injustice, e não na sofisticada e culta França, país destacado do
Primeiro Mundo? Por que envolvia “apenas” estudantes africanos que não
aparecem nas listas de excelência das grandes universidades nem representam os
interesses dos centros intelectuais de ponta dos países desenvolvidos?
Ou por que eram cristãos? Sim, é preciso formular essa pergunta. Não
porque a pertença cristã seja um “plus” a ser acrescentado ao ser humano como
uma pós-graduação em humanidade. Longe disso. Sabemos bem os
cristãos os muitos “mea culpa” que devemos fazer constantemente pelos erros
cometidos no passado, em outras épocas, quando perseguimos e cometemos
violência contra aqueles que não professavam a nossa fé. Na abertura do novo
milênio, o Papa João Paulo II pediu perdão ao mundo por esses e outros pecados
da Igreja.
Não se pode ignorar, porém, que hoje os ventos sopram em outra direção. E
que talvez a religião mais perseguida no mundo seja o cristianismo. As
palavras da jovem e corajosa cristã Cynthia dão testemunho disso. Foram
mortos aqueles que não conheciam as palavras das orações muçulmanas. O
ataque dirigia-se contra os membros de uma religião e foi cometido por um grupo
radical que deseja impor a lei islâmica naquela região.
Desde os primórdios do Cristianismo, ser perseguido por causa de sua fé é uma
graça a ser recebida e agradecida, e não uma maldição. Mas não se pode
igualmente deixar de notar que os cristãos hoje são alvos inocentes de inúmeras
perseguições. E não encontram nem na mídia nem nos formadores de opinião
apoio e reação que lhes dê suporte. Situação interpelante e que convida a uma séria
reflexão.
Enquanto
isso, choremos com os que choram seus mortos. Se soubemos “ser Charlie”
com todo o povo francês, agora é o momento de dizer: Garissa somos todos
nós. Que a esperança da Ressurreição conforte as vítimas e todos aqueles
que foram atingidos de alguma maneira por essa recente tragédia.
A teóloga é
autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de
descrença”, Editora Rocco.
Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a
reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou
impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário