O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

domingo, 9 de outubro de 2011

A ARTE DE DESAPRENDER



por Frei Betto




Apresentou-se à porta do convento um médico interessado em tornar-se frade. O prior encarregou o mestre de noviços de atendê-lo. ― Caro doutor – disse o mestre – o prior envia-lhe esta lista de perguntas. Pede que tenha a bondade de respondê-las de acordo com os seus doutos conhecimentos. O jovem médico, acomodado no parlatório, tratou de preencher o questionário.


Em menos de uma hora devolveu-o ao mestre. Este levou o papel ao prior e retornou quinze minutos depois: ― O prior reconhece que o senhor demonstra grande conhecimento e erudição. Suas respostas são brilhantes. Por isso pede que retorne ao convento dentro de um ano. O médico estampou uma expressão de desapontamento: ― Ora, se respondi corretamente todas as questões – objetou – por que retornar dentro de um ano? E se eu tivesse dado respostas equivocadas, o que teria sucedido? ― O senhor teria sido aceito imediatamente e, na próxima semana, já estaria entre os noviços. ― Então, por que devo retornar em um ano? ― É o prazo que o prior considera adequado para que o senhor possa desaprender conhecimentos inúteis. ― Desaprender? – surpreendeu-se o médico. ― Sim, desaprender.


Entrar na vida espiritual é como empreender uma viagem: quanto mais pesada a bagagem, mais lentamente se cobre o percurso. Na sua há demasiadas coisas substantivamente inúteis. E o doutor partiu sob promessa de retornar dentro de um ano, o que de fato sucedeu. Assim como há escolas e cursos para aprender, deveria também existir para ensinar a desaprender. Quantas importantes inutilidades valorizamos na vida! Quantos detalhes sugam nossas preciosas energias e consomem vorazmente o nosso tempo!


Quantas horas e dias perdemos com ocupações que em nada acrescentam às nossas vidas; pelo contrário, causam-nos enfado e nos sobrecarregam de preocupações. Precisamos desaprender a considerar os bens da natureza produtos de uso próprio, ainda que o nosso uso perdulário se traduza em falta para muitos. Desaprender a valorizar um modelo de progresso que necessariamente não traz felicidade coletiva e uma economia cuja especulação supera a produção.


Desaprender a olhar o mundo a partir do próprio umbigo, como se o diferente merecesse ser encarado com suspeita e preconceito. O desaprendizado é uma arte para quem se propõe a mudar de vida. Nessa viagem, quanto menos bagagem e mais leveza, sobretudo de espírito, melhor e mais rápido se alcança o destino. Vida afora, carregamos demasiadas cobranças, mágoas, invejas e até ódios, como se toda essa tralha fizesse algum mal a outras pessoas que não a nós mesmos.


O que nos encanta nas crianças com menos de cinco anos é a interrogação incessante, o interesse pela novidade, o espírito despojado. Era isso que sinalizou Jesus quando alertou a Nicodemos ser preciso nascer de novo, sem retornar ao ventre materno, e tornar-se criança para ingressar no Reino de Deus.


O médico candidato a noviço comprovou ser bem informado, mas ignorava a distinção entre cultura e sabedoria. Soube elencar as mais célebres telas da pintura universal, sem no entanto ter noção do que significam e por que o artista fez isto e não aquilo. Conhecia todas as doenças de sua especialidade, sem a devida clareza de como se relacionar com o doente. A humanidade não terá futuro promissor se não desaprender a promover guerras e a considerar a pobreza mero resultado da incapacidade individual.


Urge desaprender a valorizar o supérfluo como necessário e a ostentação como sinal de êxito. Desaprender a perder tempo com o que não tem a menor importância e se dedicar mais nos cuidados do corpo que do espírito.


A vida espiritual é um contínuo desaprender de apegos e ambições, vaidades e presunções. A felicidade só conhece uma morada: o coração humano. Eis aí milhões de viciados em drogas a gritar a plenos pulmões terem plena consciência de que a felicidade resulta de uma experiência interior, de um novo estado de consciência. Como não aprenderam a abraçar a via do absoluto, enveredaram pela do absurdo. E convém aprender: no amor mais se desaprende do que se aprende.


Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário