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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

RETRATO EM BRANCO E PRETO



Por  Maria Clara Lucchetti Bingemer 


            A comovente foto de um jovem afrodescendente estadunidense de 12 anos abraçado em lágrimas a um policial branco nas ruas de Ferguson, Missouri, comoveu não só os Estados Unidos, mas o mundo inteiro.  A comoção emergiu de uma Ferguson enlutada desde agosto e indignada desde novembro.  E mostra um outro caminho para os eventos que deslancharam todo esse acirrar de ânimos em Ferguson.

            É curto o amor e longo o esquecimento, dizia o poeta chileno Pablo Neruda.  Podemos parafraseá-lo em relação aos eventos de Ferguson, dizendo que é curta a violência e longo o perdão. A violência foi curta e rápida sobre o jovem Michael Brown, de 18 anos, que levou um tiro de um policial, na noite de 9 de agosto de 2014.

            Andando ao lado de um amigo, Michael vinha de uma loja e caminhava pelo meio da rua.  Darren Wilson, policial e branco, dirigiu a viatura que conduzia para perto dos jovens e mandou que fossem para a calçada.  Seguiu-se uma discussão em que os dois rapazes procuravam apoderar-se, através da janela do carro, da arma que o policial portava.  Quando a arma disparou, cada um fugiu para um lado.  E Darren Wilson começou a seguir Michael.

            Enquanto corria e perseguia o jovem negro, a arma do policial disparou várias vezes. Doze vezes em total, segundo a mídia.  Destes, sete ou oito atingiram Brown, sendo o último o fatal.  Há controvérsias entre os depoimentos sobre se o jovem Brown ergueu as mãos e rendeu-se e em que momento.  Assim também como se ele corria em direção ao policial quando o tiro fatal o atingiu.

            A violência curta e brutal, um jovem negro morto, um policial cuja arma o matou.  Narrado em alguns parágrafos como fazemos, o conjunto da tragédia não deve ter durado mais que alguns minutos.  E, no dia seguinte, o país e o mundo debatiam os conflitos raciais nos Estados Unidos e a doutrina do uso da força por parte da polícia americana, celebrizada até mesmo em filmes e obras literárias.

           A comoção provocada no mundo pelo episódio reside no fato de que o jovem Brown estava desarmado.  E o policial, armado.  O negro não portava arma, o branco sim. Havia um assassinato, o assassino tinha que ser julgado.  E o processo contra Darren Wilson começou a acontecer. O juízo que deveria restabelecer a paz alongou-se por três meses e teve, no último dia 24 de novembro, um desfecho inesperado, que interrompeu de forma estridente e desagregadora o luto que apontava para uma justiça.  O policial branco que atirou e matou o jovem negro foi considerado inocente e o júri não o indiciou.

            A revolta com a sentença foi patente não apenas por parte dos familiares de Michael Brown.  Mas também por todos os movimentos antirracismo, nos Estados Unidos e no exterior.  O mundo debruçou-se sobre o caso, questionando o presidente Obama, o sistema judicial americano e trazendo à baila antigas feridas que se acreditava curadas, mas demonstraram ainda doer e sangrar, em carne viva.

            Falando em público pela primeira vez após o fato, o policial Darren Wilson disse ter a consciência tranquila, pois faria a mesma coisa se se tratasse de um jovem branco e só atirou porque acreditou que Brown iria matá-lo.  Difícil acreditar em sua versão, pois o jovem negro se encontrava desarmado.  No entanto, o policial reafirmou que o jovem avançou em sua direção e queria tomar-lhe a arma para matá-lo.

            As ruas foram novamente tomadas por manifestações e protestos. O não indiciamento do policial inflamou novamente os espaços públicos da pequena Ferguson, onde numerosas lojas foram pilhadas e incendiadas durante a noite. A paz e o perdão prometiam e prometem ser ainda mais demorados, levando a questões estruturais que denunciam a vitalidade ainda presente e letal do racismo estadunidense.

            Por tudo isso, o retrato em branco e preto do abraço entre o sargento Bret Barnum e Devonte Hart, de 12 anos, durante um protesto em Portland em apoio ao acontecido em Ferguson e em repúdio ao julgamento que inocentou Darren Wilson, ao mesmo tempo comove e destila um resto de esperança. 

            O retrato em branco e preto do sargento e do menino, suas lágrimas e o afeto que transmite mostram que o perdão pode demorar, mas está em curso.  Que neste Advento, quando se espera tudo que de bom e de justo o Salvador pode trazer, possamos crer firmemente que esta é a verdade: a de um menino negro abraçado a um policial branco e não a de um branco armado que atira e mata um jovem desarmado.

            A verdadeira humanidade está expressa neste abraço, que ao longo da história tem salvado a humanidade de perecer para sempre, vítima da própria violência.
           
 Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
 A teóloga é autora de Simone Weil Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
 Copyright 2014 MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br

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