Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
A comovente foto de um jovem afrodescendente estadunidense de 12 anos abraçado
em lágrimas a um policial branco nas ruas de Ferguson, Missouri, comoveu não só
os Estados Unidos, mas o mundo inteiro. A comoção emergiu de uma Ferguson
enlutada desde agosto e indignada desde novembro. E mostra um outro caminho para os eventos que deslancharam todo esse acirrar de
ânimos em Ferguson.
É curto o amor e longo o esquecimento, dizia o poeta chileno Pablo
Neruda. Podemos parafraseá-lo em relação aos eventos de Ferguson, dizendo
que é curta a violência e longo o perdão. A violência foi curta e rápida sobre
o jovem Michael Brown, de 18 anos, que levou um tiro de um policial, na noite
de 9 de agosto de 2014.
Andando ao lado de um amigo, Michael vinha de uma loja e caminhava pelo meio da
rua. Darren Wilson, policial e branco, dirigiu a viatura que conduzia
para perto dos jovens e mandou que fossem para a calçada. Seguiu-se uma
discussão em que os dois rapazes procuravam apoderar-se, através da janela do
carro, da arma que o policial portava. Quando a arma disparou, cada um
fugiu para um lado. E Darren Wilson começou a seguir Michael.
Enquanto corria e perseguia o jovem negro, a arma do policial disparou várias
vezes. Doze vezes em total, segundo a mídia. Destes, sete ou oito
atingiram Brown, sendo o último o fatal. Há controvérsias entre os
depoimentos sobre se o jovem Brown ergueu as mãos e rendeu-se e em que
momento. Assim também como se ele corria em direção ao policial quando o
tiro fatal o atingiu.
A violência curta e brutal, um jovem negro morto, um policial cuja arma o
matou. Narrado em alguns parágrafos como fazemos, o conjunto da tragédia
não deve ter durado mais que alguns minutos. E, no dia seguinte, o país e
o mundo debatiam os conflitos raciais nos Estados Unidos e a doutrina do uso da
força por parte da polícia americana, celebrizada até mesmo em filmes e obras
literárias.
A
comoção provocada no mundo pelo episódio reside no fato de que o jovem Brown
estava desarmado. E o policial, armado. O negro não portava arma, o
branco sim. Havia um assassinato, o assassino tinha que ser julgado. E o
processo contra Darren Wilson começou a acontecer. O juízo que deveria
restabelecer a paz alongou-se por três meses e teve, no último dia 24 de
novembro, um desfecho inesperado, que interrompeu de forma estridente e
desagregadora o luto que apontava para uma justiça. O policial branco que
atirou e matou o jovem negro foi considerado inocente e o júri não o indiciou.
A revolta com a sentença foi patente não apenas por parte dos familiares de
Michael Brown. Mas também por todos os movimentos antirracismo, nos
Estados Unidos e no exterior. O mundo debruçou-se sobre o caso,
questionando o presidente Obama, o sistema judicial americano e trazendo à baila
antigas feridas que se acreditava curadas, mas demonstraram ainda doer e
sangrar, em carne viva.
Falando em público pela primeira vez após o fato, o policial Darren Wilson
disse ter a consciência tranquila, pois faria
a mesma coisa se se tratasse de um jovem branco e só atirou porque acreditou que Brown iria matá-lo.
Difícil acreditar em sua versão, pois o jovem negro se encontrava desarmado.
No entanto, o policial reafirmou que o jovem avançou em sua direção e queria
tomar-lhe a arma para matá-lo.
As ruas foram novamente tomadas por manifestações e protestos. O não
indiciamento do policial inflamou novamente os espaços públicos da pequena
Ferguson, onde numerosas lojas foram pilhadas e incendiadas durante a noite. A
paz e o perdão prometiam e prometem ser ainda mais demorados, levando a
questões estruturais que denunciam a vitalidade ainda presente e letal do
racismo estadunidense.
Por tudo isso, o retrato em branco e preto do abraço entre o sargento Bret
Barnum e Devonte Hart, de 12 anos, durante um protesto em Portland em apoio ao
acontecido em Ferguson e em repúdio ao julgamento que inocentou Darren Wilson,
ao mesmo tempo comove e destila um resto de esperança.
O retrato em branco e preto do sargento e do menino, suas lágrimas e o afeto
que transmite mostram que o perdão pode demorar, mas está em curso. Que
neste Advento, quando se espera tudo que de bom e de justo o Salvador pode
trazer, possamos crer firmemente que esta é a verdade: a de um menino negro abraçado
a um policial branco e não a de um branco armado que atira e mata um jovem
desarmado.
A verdadeira humanidade está expressa neste abraço, que ao longo da história
tem salvado a humanidade de perecer para sempre, vítima da própria violência.
Maria Clara Lucchetti
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de Simone Weil Testemunha da paixão e da
compaixão" (Edusc)
Copyright 2014 MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER Não é permitida a reprodução
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