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quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

SEGREDOS DE UM RITUAL



Por Marcelo Barros


Hoje, a juventude parece mais autêntica e avessa a convenções do que em outros tempos. No entanto, a sociedade dominante é muito envolvente e mexe na imagem social das pessoas. Quem tem fé acredita no Espírito Santo. Ele inspira e impulsiona quem segue o caminho da justiça e da paz. Do outro lado, o sistema do mundo consumista também tem um espírito sedutor. Ele envolve os jovens, principalmente quando se trata das fantasias que cercam uma boa e bela festa de casamento. Aí, com raras exceções, o espírito que move a sociedade dominante inspira e os/as jovens embarcam na fantasia, como se o romantismo que, em si, é bom, precisasse do estilo da corte do rei Luiz XIV para se expressar.

O tal ritual começa pela contratação de um cerimonial. O/a chefe desse cerimonial será mais importante do que o padre que celebrará e do que o próprio casal de noivos que lhe obedecerão em cada momento do show. Por isso, as pessoas que comandam o cerimonial virão todas de preto, como se fosse para um funeral. Também contratam um pelotão de fotógrafos, armados para preparar o mais importante de tudo: o álbum de fotografias e o DVD da cerimônia.

O mesmo espírito consumista revela que a maioria dos/as convidados/as se liga mesmo na recepção e no bufê. Mesmo sendo gente muito bem alimentada não dispensa o comer e beber. Por isso, casamento que se preze deve contratar uma casa de eventos com estrutura apropriada. De preferência, se escolha uma que tenha salão ornamentado como um palácio de espelhos, ou suntuosa tenda de sheik árabe. O roteiro do show é sempre o mesmo e dispensa qualquer inteligência crítica. No entanto, “noblesse oblige”, faz parte do ritual, escolher também uma Igreja e enfrentar a chatice de um rito religioso. Mesmo se, para a maioria dos noivos, a cerimônia religiosa não acrescenta nada, ao menos serve como cenário do desfile. E como é uma vez na vida, não faz mal a ninguém. Em muitos casos, os noivos nunca entraram em uma Igreja, a não ser no casamento de algum amigo, ou quando eram criancinhas e, sem terem culpa, a convenção social os levou para serem batizados/as. No entanto, o casamento na Igreja faz parte do protocolo. Apesar de, quase sempre, ser uma cerimônia maçante e sem graça, pode render boas fotografias. O importante é que seja organizado de forma a deixar claro que qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Com relação a isso, os padres não precisam se preocupar. Mesmo se, como, uma vez ou outra soe acontecer, o celebrante apenas repita fórmulas de outros tempos, que não dizem nada às pessoas da geração atual, o mestre do cerimonial e seus assessores garantem piorar. Afinal, são pagos para, se possível, tornar tudo mais medíocre e artificial.

Os músicos ou cantores garantem a trilha sonora da entrada dos convidados. O repertório é sempre rico. De preferência: “Over the raimbow” nos transportará para a fantástica terra do mágico de Oz. Pode ser também o “tema de Lara”. Ou outros musicais americanos das décadas douradas. Quando o carro da noiva chega à porta do templo, os músicos tocam outra melodia romântica e o cerimonial dá início ao desfile de modas. Passo a passo, do fundo do templo, transformado em passarela de circo, surge o primeiro casal de testemunhas. Vestidos com a maior formalidade, um homem e uma mulher, reunidos pelo cerimonial como casal apenas para essa circunstância, caminham lentamente e, a cada passo, posam para os fotógrafos. Só quando os dois tomam acento no lugar a eles reservado, entra o casal seguinte.  O cerimonial não deve preocupar-se com tempo. Afinal, estamos no século XIX, em que os relógios marcham em outro ritmo. Quando todos os casais, gentis e sorridentes, estiverem em seus lugares, entra o noivo, de braços com a mãe. Ao som de outra música romântica (já houve casos de,  inocentemente, solarem os acordes da bela trilha do “Poderoso Chefão”), o noivo percorre a passarela até chegar ao altar, onde o cerimonial o põe na melhor posição para as fotos. É então, o momento da máxima emoção. As portas da Igreja, que tinham sido fechadas, se abrem para a noiva entrar. Muitas moças esperam a vida inteira por esse desfile de princesa de contos de fada que, por acaso, é revivido em uma Igreja Católica. Antecedendo à noiva, vem um pequeno cortejo de damas de honra, em geral, crianças que, desde cedo, são preparadas para também sonhar com o desfile hollywoodiano. Toda breguice será abençoada. A moça é conduzida por seu pai e por ele entregue ao novo protetor: seu futuro esposo. Um homem entrega a mulher a outro homem. Qualquer feminismo que pense o casal em termos de igualdade deve esperar um cerimonial diferente. Pelo momento, domina a cultura patriarcal. Afinal, se se veste a noiva de princesa medieval ou  cortesã das mil e umas noites, para que outro simbolismo?

Quando a cerimônia religiosa começa, o padre percebe que sua parte parece importante, mas é mero apêndice do desfile e da sucessão de fotos que se seguirão. Se o celebrante atrair demais a atenção dos noivos e convidados, os fotógrafos e pessoal do cerimonial ficam encarregados de agir. A cada momento, passam diante do altar, ajeitam a cauda do vestido da noiva e, de vez em quando, lembram aos dois que estão ali para posar. Mas, quando o padre declama o Amém final à bênção que ele próprio leu no ritual, uma voz no céu sussurra: “E dizem que toda essa encenação é em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Coitado de Deus. 

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.

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