Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
O grande escritor brasileiro João Guimarães Rosa disse ser preciso pedir esmola às
palavras" para dizer a verdade. A teologia e a mística sempre se
propuseram a fazer isso, usando o conceito de contemplação. Palavras são
contempladas para deixá-las revelar a verdade que buscamos.
Considerar atentamente uma palavra é como um exercício espiritual que nos
permite atingir mais profundamente a verdade de um conceito e o que ele
expressa. A palavra cuidado" é entendida como
o sentimento do Espírito inquieto por algo ou alguém. O cuidado é, portanto, o
ato de preservar, conservar, assistir. Cuidar envolve ajudar a si mesmo ou a outro
ser vivo, tentando aumentar seu bem-estar e evitando que ele ou ela seja mal
utilizado ou abusado.
Mas "cuidado" também é definido como "diligência",
"vigilância" des-velo. De forma especial, este último sinônimo é mais
importante que os outros, porque vai levar-nos a regiões mais distantes e mais
profundas, mostrando o alcance verdadeiramente espiritual do cuidado.
Mas, primeiro, vamos olhar para a etimologia da palavra
"cuidado". Os dicionários gerais e enciclopédias definem cuidados
relacionando à saúde física, bem-estar, preservando energia e força física.
Isso, obviamente, é uma definição importante, mas não o bastante em sua
essência e o que nós queremos aqui na configuração de uma espiritualidade do
cuidado, ou se relacionam espiritualidade e cuidado.
A palavra cuidado vem do latim e o seu significado primário é cura.
Cura expressa a atitude de cuidado, insônia, preocupação e interesse para com o
objeto ou pessoa amada. É cogitar e pensar sobre o outro, colocar a atenção e
prioridade sobre ele, mostrar interesse por ele e revelar uma atitude de
vigilância e preocupação com sua alteridade e suas fragilidades.
Cuidado só passa a existir quando a existência de algo ou alguém é
importante para mim. É então que me dedico a ele ou a ela, estou pronto a
participar de seu destino, suas lutas e desejos, suas dores e suas
conquistas. Em suma, de sua vida. Isso revela que o cuidado não é uma atitude
curativa momentânea, de algo definido como doença ou mal-estar, que vai durar
enquanto permanece o problema, cessando quando este está curado ou resolvido.
Pois cuidado é uma atitude permanente. E aqui vem a palavra desvelo, em
seguida ajudando a criar uma verdadeira espiritualidade do cuidado.
Cuidado é incessante atitude vital, é vigilância, aplicação, diligência,
zelo, atenção, carinho. Implica um modo de ser e existir pelo qual a pessoa sai
de si, descentra-se e concentra-se no outro com vigilância e aplicação
permanentes. Isso necessariamente engendra um compromisso que traz preocupação,
perturbação e senso de responsabilidade para com os outros.
As mães são um bom exemplo desta atitude permanente de cuidado-desvelo.
Sabemos que a persistência dessas mulheres quando seus filhos são mortos na
guerra às drogas chega ao ponto em que vão negociar com traficantes e bandidos,
a fim de receber de volta os restos do filho morto, a fim de enterrar e chorar
seu corpo com dignidade. Também quem é mãe já experimentou quão larga é a
noite em que se espera que um filho ou filha volte da rua, até o momento de
alívio e descanso quando a chave roda na fechadura e sabe-se que ele ou
ela chegou em segurança e está em casa. É um desvelo literal: a pessoa se
des-vela, não consegue dormir, incapaz de desligar-se daquilo que é o
assunto do seu cuidado.
Afirma Leonarod Boff que cuidado, por sua natureza, inclui dois
significados fundamentais, intimamente interligados. O primeiro indica a
atitude de vigilância, aplicação e cuidar uns dos outros. O segundo nasceu
desta primeira: inquietude, preocupação por outro, porque nos sentimos
emocionalmente envolvidos e ligados a outra pessoa.
O grande poeta latino Horácio, que viveu em 68 aC, observava: "Cuidar
é o companheiro constante do homem." Em outras palavras, o cuidado está sempre
presente na vida humana, porque - se somos verdadeiramente humanos - nunca
paramos de amar alguém e desvelar-nos por ele ou por ela. Também não deixamos
de preocupar-nos por ela e seu bem-estar. Se assim não fosse, não
estariamos envolvidos com ele ou ela, responsáveis por ele ou ela. Seriamos
negligentes e irresponsáveis por sua vida e seu destino. Indiferentes, e assim
viveríamos a morte do amor ... e também de nossa humanidade.
O cuidado é, portanto, constitutivo de nossa natureza humana. Mas também
nos mostra um outro aspecto, tão importante ou mais do que esse, e que a
teologia descobre, sendo como é, a inteligencia da fé. Ser capaz de se importar
tanto a ponto de desassossegar-se, sofrer, sacrificar-se, desvelar-se por
alguém é uma prova da nossa condição de seres criados à imagem e semelhança de
Deus, o Criador. E, portanto, plenamente humanos e capazes de
auto-transcendência e de refletir o divino.
Cuidado é,
pois, além de des-velo, re-velação. É o levantar do véu de nossa identidade e
do Mistério do Deus que nos habita, cuidador desvelado cujo coração é afetado
pela felicidade e segurança das criaturas nascidas de seu amoroso coração.
A teóloga é professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio e autora de Simone Weil Testemunha da paixão
e da compaixão" (Edusc)
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