por Maria Clara Lucchetti Bingemer
E eis-nos novamente aqui, como todo ano, esperando por
uma criança que vai nascer. Algo tão usual, tão ocorrente e
recorrente. Pelas ruas, as mulheres andam, caminham e passeiam com suas
barrigas cheias de vida que pulsa; cheias de um embrião que cresce e vai
adquirindo a forma humana, com os olhos claros da mãe, a testa larga do pai, o
temperamento forte da família... Nas maternidades, hospitais ou nas casas, o
tempo vem a termo e das barrigas, antes grávidas, nasce a criança que todos
esperavam. E há choro, lágrimas, gritos de dor e de alegria.
E, no entanto, aqui estamos nós, arrumando presépios,
preparando ritos, distribuindo votos e presentes... como se fosse a coisa mais
extraordinária do mundo. Uma criança que nasce... tão ordinário e, ao mesmo
tempo, tão extraordinário... parece que tudo começa de novo... recomeça...
volta ao começo, àquele começo que no final do século I da nossa era um evangelista
descreveu assim: No
Princípio era o Verbo...
Ora, o que tem algo tão corriqueiro e usual como o
nascimento de uma criança a ver com essa sofisticada redação? Parece-me,
ao contrário, que tem tudo a ver. Porque o evangelista continua: E o Verbo estava junto de Deus.
E o Verbo era Deus.
E, não satisfeito, diz mais adiante: E
o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
Parece que o assombro cresce e a questão se
complica. Pois Aquele que era desde o princípio, que estava junto de Deus
e era Deus...como entra no tempo e se faz carne? Como? Da maneira como
todos nós entramos no mundo: no ventre de uma mulher, a semente divina cresceu,
desenvolveu-se e quando se consumaram os dias de sua gestação, a mãe deu à luz
seu filho.
Assim entrou Deus na história: criança, bebê, rompendo
caminho pelo corpo da mãe afora, vindo à luz, chorando para abrir os pulmões,
mamando para alimentar-se. Uma criança... uma simples criança. Aos
reis magos que perguntaram como reconheceriam o sinal de Deus de que o Messias
havia chegado, foi-lhes dito apenas este fato tão banal: encontrareis uma
criança... encontrareis um menino envolto em faixas e deitado em uma
manjedoura.
Um bebê que não sabe alimentar-se sozinho... não sabe valer-se sozinho... precisa dos
outros para tudo... E, sobretudo, que não sabe falar. Apenas
chorar. Mas como? O Verbo de Deus não sabe falar? A Palavra
que foi pronunciada sobre o caos e criou o mundo não fala? Por quê?
Por que não pode? Por que não sabe? Sim, não pode, não sabe, pois
se entrou na carne humana, segue todo o caminho que esta carne segue para seu
crescimento e desenvolvimento. E, assim, o Verbo que foi pronunciado
sobre tudo... não sabe falar... ainda.
Mais tarde aprenderá a falar. Será poeta de
parabolas, que ensinarão muitos a viver. Todo o povo permanecerá suspenso do
que sai de seus lábios. Falará, pregará, dirá palavras de alegria, de
esperança, de alívio, de consolo para tantos e tantas... Mas, no momento, não
fala. Alimenta-se, chora, dorme... vive a rotina de um recém-nascido, que
deve ser introduzido na vida pela mãe que o gerou, pelo pai que o acompanha,
pelos outros que cruzarão seu caminho.
Por isso, esperamos com tanto ardor por essa
criança. Ela é semelhante a todas, porque não quer diferenciar nem destacar-se
em nada. Quer justamente assumir a condição humana e aprender a ser
humano. Por isso, aprenderá a falar... a andar... a mover-se... a amar...
a sofrer... a viver enfim. E crescerá e se tornará adulto... e entenderá
sua missão... e se entregará a ela até o fim.
A festa do Natal tem em seu centro uma criança...
impotente, indefesa, pobre, frágil, vulnerável. Diante dela nos
inclinamos, atentos, humildes, reverentes... pois nela pulsa o mistério maior
que é o mistério da vida. E, no caso desta criança, da vida que nos
salvará da morte e nos levará ao país da alegria pura e sem término. Nesta
criança é Deus mesmo que aprende a ser humano.
Enquanto isso, contemplamos as mulheres que passam com
suas barriguinhas redondas e cheias de vida; e as crianças que choram, mamam,
dormem e vivem intensamente; e as crianças que não puderam nascer; ou as que
nasceram e não puderam viver; e as crianças que nascerão e a todos nos dirão
palavras de vida. Em toda criança, já nascida ou esboçada no ventre da mãe,
o Natal acontece. O Verbo de Deus se faz criança. E em seu silêncio
bendito... fala.
Que possamos acolhê-lo em nosso colo, em nosso lar, em
nossa vida. Que seu mistério de graça e pobreza nos conquiste o
coração. Que aceitemos que quem nos salva não é um poderoso e violento
chefe militar, ou um rei coroado e cheio de poder, mas uma criança indefesa,
que ainda não sabe falar, mas cuja pureza nos ensina o que é o amor.
FELIZ NATAL!
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de O mistério e o mundo Paixão por Deus em tempo
de descrença,
Editora Rocco. Copyright 2014
MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER Não
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