Por Eduardo Hoornaert
A cada ano fica mais claro
que as dimensões da figura de Helder Câmara ultrapassam as funções que ele
ocupou na vida, especificamente a função de arcebispo católico de Olinda e
Recife. A cada ano se ressalta mais seu valor universal, para além da diocese, da
igreja do Brasil, do catolicismo e mesmo do cristianismo em geral. O
primeiro a enxergar isso, 15 anos atrás, foi o escritor e dirigente comunista
francês Roger Garaudy. No livro ‘Helder, o Dom’ editado pela Vozes em 1999 e
coordenado por Zildo Rocha, ele escreve textualmente: ‘Meu primeiro encontro
com Dom Helder foi o momento mais importante de minha vida’ (p. 29). Não se
escreve uma frase dessas à toa. Ela resume uma vida inteira. Ele explica: ‘em
1967, eu estava participando de um encontro em Genebra e, no intervalo de uma
das sessões, alguém me procurou para dizer: um arcebispo o espera no corredor´.
Era Helder Câmara, que logo tomou a palavra e propôs ao dirigente comunista um
pacto: você diz aos comunistas que religião nem sempre é alienação e eu digo
aos católicos o socialismo não é algo condenável. Num de seus escritos, Helder
Câmara comentou esse momento com as seguintes palavras: ‘eu sentia que no
essencial Roger Garaudy e eu pensávamos da mesma maneira’. Um dirigente
comunista e um arcebispo católico pensam da mesma maneira! Isso não é sinal de
universalismo? E o texto de Garaudy termina com as seguintes palavras: ‘Graças
a Dom Helder Câmara, o muçulmano que sou e o marxista que não deixei de ser
consideram Jesus o eixo central de minha vida’ (p. 31).
Esse episódio mostra que, já em
1967, Helder Câmara era capaz de transcender o cargo que exercia para enxergar
um horizonte mais amplo, o da humanidade como um todo. O mesmo Roger Garaudy,
num de seus livros, tinha soltado um grito, dirigido às igrejas cristãs:
‘Devolvam-nos Jesus: Ele nos pertence’. Jesus é do mundo, não das igrejas. E
penso que por trás do encontro entre ele e Helder se pode ouvir um grito
parecido, dirigido à igreja católica:
Devolvam-nos Helder Câmara,
Ele nos pertence.
É o grito silencioso da
bandeira do Movimento dos Sem Terra estendida sobre o caixão de Helder Câmara
no dia de seu enterro.
Não, não podemos prender Helder
Câmara nas nossas instituições. Como discípulo fiel de Jesus de Nazaré, Helder
Câmara pertence ao mundo. Não é bom que suas mensagens fiquem apenas circulando
dentro de uma determinada organização. Jesus e Helder: pássaros de voo livre,
que não podem ficar presos numa gaiola, por dourada que seja.
Pode parecer um tanto ousado o
que digo aqui, mas corresponde perfeitamente ao que nós, seus colaboradores,
presenciamos diversas vezes no convívio com Helder Câmara. Pessoalmente
trabalhei durante quase 17 anos com ele, desde sua posse em 1964 até a minha
saída do clero em 1980. Sempre tive a impressão de que a igreja era para ele um
trampolim para a sociedade. Um palanque, um microfone, uma tela de TV, uma
difusora. Isso tanto é verdade que a publicidade foi seu maior escudo contra as
ameaças de morte que recebia. Ele só não foi morto porque temia-se a
repercussão da morte de um bispo famoso. Escapou pela publicidade em vez de
fugir na clandestinidade.
Quero comentar com vocês que numa
determinada ocasião ele realmente nos surpreendeu. Numa tarde, parece que foi
nos inícios dos anos 1970 ou no final dos anos 1960, ele nos chama para o
Palácio dos Manguinhos. Uns vinte padres, mais ou menos. Aí ele começa a dizer
que a igreja católica não tem a projeção que merece: o mundo oriental tem
Gandhi, os Estados Unidos têm Martin Luther King, mas a igreja católica não tem
nenhuma figura que represente o que ela está realmente fazendo neste momento.
Fiquei sem saber o que pensar dessas palavras, pois naquele tempo eu não tinha
capacidade de perceber o real alcance delas. Pensei: ele está se comparando a
Gandhi e Martin Luther King, isso é muito atrevimento. Só depois de sua morte
em 1999, cheguei a compreender o real alcance da comparação daquela tarde nos
Manguinhos. Hoje, entendo que Helder Câmara efetivamente figura como um símbolo
universal, comparável a Gandhi, Martin Luther King e, para falar nos termos de
hoje, Mandela. São personagens que por assim dizer delineiam figuras que
representam o que há de mais humano no pensamento de uma época, cultura,
continente, país, agrupamento humano. São figuras universais, já desligadas da
trajetória concreta de suas vidas. Elas tornam-se símbolos universais:
independência e verdade (a Satyagraha de Gandhi), superação do racismo
(Mandela), opção pelo pobre (Helder Câmara). Hoje vejo claramente que, naquela
tarde nos Manguinhos, Helder não estava afirmando sua personalidade, mas
revelando uma profunda intuição política, uma visão do âmago das questões. Se,
naquela época, a desenvoltura com que Helder falou de grandes figuras da
história me causou certo espanto, era, no fundo, porque naquele tempo eu não
tinha a maturidade para pensar em Helder Câmara. Só consegui pensar em Dom
Helder. É foi isso, afinal, que me impediu de enxergar a grandeza de suas
colocações.
Continuemos por uns instantes com
a comparação entre Gandhi, Mandela e Helder Câmara, desta vez em termos de
estratégia de ação. Gandhi foi o mestre, ele avançou a ideia da não-violência
ativa como uma estratégia que escapa ao círculo vicioso da dialética entre ação
e reação, situação e revolta, dominação e insurreição, ou seja, para
falar em termos helderianos, da ‘espiral da violência’. Nas conferências entre
representantes da Índia e da Inglaterra, Gandhi repetia: a independência da
Índia não é só boa para os indianos, mas também para os ingleses. Com isso, ele
se mostrou capaz de olhar para além das fronteiras da Índia e de compartilhar
os sentimentos ingleses. Nisso se mostrou universalista. Mandela aprendeu isso
com Gandhi. De início aderiu a movimentos violentos, o que lhe custou 27 anos
de prisão, mas com o tempo aprendeu que a superação do apartheid na África do
Sul não era algo bom só para os negros, mas também para os brancos. Nesse
ponto, Helder Câmara mostrou-se igualmente discípulo de Gandhi quando nos
dizia, muitas vezes: ‘não se trata de vencer, mas de convencer’. Em suas cartas
circulares ele repetia: a rejeição dos métodos de tortura e repressão violenta
não é só proveitosa para a população, mas também para os militares. Na época,
muitos não compreendiam essa postura aparentemente fraca por parte do arcebispo
e esperavam dele posturas de confronto aberto. Queriam, sem saber, que ele se
metesse no círculo vicioso da espiral da violência, mas Helder tinha lido os
evangelhos e estava convencido do princípio supremo do amor ao inimigo, não
sete vezes, mas setenta vezes sete vezes. Nisso, ele seguia Jesus como Gandhi
seguia os antigos mestres hindus.
Podemos avançar um pouco mais e
dizer que Helder Câmara alçou uma bandeira mais difícil de segurar que as de
Gandhi e Mandela. Em seu livro ´A espiral da violência’, de 1978, ele descreve
três tipos de violência: a institucional, a revolucionária e a repressiva. A
novidade está na descrição da primeira violência, geradora das demais: a
instituição de sociedades baseadas na injustiça e, portanto, na violência. Aqui
Helder vai além de Gandhi e de Mandela e ataca um problema que subjaz a todos
os demais: a pobreza como consequência da violência institucional. O livro ‘A
espiral da violência’ mostra que a opção pelo pobre é a grande novidade no
cenário mundial dos anos 1970, algo mais profunda e mais complexa que a opção
pela descolonização ou pela valorização da raça negra. É uma opção que exige
uma análise continuada e sempre atualizada da sociedade.
Hoje muitas das ideias
helderianas começam a se difundir no mundo e na igreja. O papa Francisco pode
ser chamado de helderiano. Mas o programa traçado por Helder Câmara é muito
exigente:
“Quando dou uma esmola a um
pobre, me chamam santo
Quando pergunto por que ele é
pobre, me chamam comunista.”
Essas duas linhas expressam uma
exigência muito grande, melhor, um desafio para todos nós.
Não posso terminar sem esclarecer
que não quero dizer que está errado quem continuar falando em Dom Helder, nosso
querido Dom. Em minha fala só quis realçar que Helder não necessita do Dom para
ser grande. Não se trata de desvalorizar ou ‘secularizar’ o querido Dom. À
primeira vista, temos a impressão que dizer ‘Helder’ é diminuir ‘Dom Helder’.
Mas isso é apenas uma impressão. O que importa é que a memória de Helder seja
um espaço universalista no coração do mundo e lembre a vocação universalista
que todos nós carregamos conosco. Para além da igreja, do cristianismo e mesmo
das minorias abraâmicas, em direção às minorias de espírito abraâmico
espalhadas pelo mundo inteiro.
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