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sábado, 30 de abril de 2011

PELO DIREITO DE SER BRINCALHÃO






por MARCELO BARROS



Em um mundo dominado por todo tipo de tragédias, a capacidade natural de brincar parece quase inconseqüência. Quando Roberto Begnini divulgou no cinema “A Vida é Bela”, muitos críticos o acusaram de, ao brincar com o holocausto sofrido pelos judeus, dar ao nazismo uma expressão mais palatável e menos cruel. Ele respondeu que considerava o humor uma arma ferina não só para desacreditar as ditaduras, como para revelar o descalabro de muitas iniqüidades que se impõem como sérias.
Já em 1997, a revista francesa Actualité des Réligions dedicou um número ao humor e ao riso (Peut-on rire de tout?, ARM n. 151, janvier 1997). Havia uma pesquisa sobre como diversos chefes de religiões encaram o humor . Descobriu-se que a maioria das hierarquias religiosas se ofende com qualquer sátira ou ironia sobre o seu poder sagrado. A seriedade é considerada sinal de santidade e a melancolia de maturidade humana. O riso, ao contrário, aparece como, ao menos, muito suspeito. Por isso, os religiosos têm dificuldade de rir quando o judeu Woody Allen se veste de rabino e proclama: “Deus não existe, mas nós somos seu povo eleito”. Ou quando atesta: “Deus tem um grande senso de humor. Só que ultimamente não tem tido muitos motivos para rir”.
Certamente, não os encontrará nos templos religiosos nem nas sedes das Igrejas. A maioria das religiões acentua demais a inclinação humana para o pecado e tem a tendência de identificar a piedade com a consciência da própria culpa e o desejo de conversão. No romance “O Nome da Rosa”, Umberto Eco mostra um mosteiro do século XIII, no qual vários monges foram assassinados só para não lerem o livro de Aristóteles sobre o riso.
Em uma sociedade já tão pesada, é urgente que, ao menos as pessoas que buscam viver a espiritualidade deixem as fisionomias carrancudas para quem não ama e testemunhem que, se a espiritualidade é um caminho amoroso, terá, então, de aprender a conviver melhor com a alegria e ser menos severa com o prazer. Afinal, vencer o sofrimento e trazer ao ser humano paz e alegria é o objetivo da maioria das tradições religiosas antigas e novas. Cinco séculos antes de Cristo, Buda era um príncipe que deixou o seu palácio e se tornou mendigo para compartilhar com os pobres a sua vida e encontrar a superação do sofrimento humano. O Dalai Lama ensina que Buda encontrou o segredo da alegria e da paz interior na compaixão (solidariedade com todo ser vivo). Os cultos de matriz africana assumem como objetivo partilhar o Axé, energia vital de amor, com todas as pessoas.
A Bíblia diz que o próprio Deus vem ao mundo para nos encontrar no cotidiano da vida e implantar na terra o projeto divino de paz, justiça e comunhão. Para isso, escolhe pessoas como Abraão e Sara, velhos e estéreis, Moisés e Miriam, hebreus clandestinos, Rute, mulher estrangeira e pobre, Davi, pastor de ovelhas e tantos outros homens e mulheres marginais para ser porta-vozes de sua aliança de amor com a terra. Conforme os Evangelhos, Jesus chama pescadores e pecadores para fazer parte do seu movimento profético que, mais tarde, inspirou o surgimento das Igrejas cristãs.
O primeiro salmo começa pela palavra “Feliz ou abençoado quem anda nos caminhos do Senhor”. André Chouraqui, judeu e grande mestre da Bíblia, falecido há poucos meses, traduz este termo “feliz” por uma expressão de confirmação e estímulo: “para frente...”. Conforme o testemunho do evangelho de Mateus, são estas as mesmas palavras que Jesus fala no primeiro discurso público, quando, do alto da montanha, proclama: “Felizes os que têm coração de pobre, os que estão aflitos, os que trabalham pela paz, os que têm fome e sede de justiça...” (Cf. Mt 5).
Para um budista, nada é levado mais a sério do que a gozação. Quem já viu alguma vez o Dalai Lama certamente o terá visto sorrindo. Para a espiritualidade budista, a finalidade da brincadeira é desestabilizar o pequeno “eu” e despertar a natureza do Buda presente, mas adormecida na consciência do seu fiel.
Nesta mesma linha, ao contrário do que ensinava certa tradição que Jesus nunca tinha sido visto rindo, mas, ao contrário, o Evangelho o mostra chorando, Luis Bunuel, no seu filme “O Caminho de São Tiago” retrata na última ceia, Jesus rindo muito e contando piadas a seus discípulos. Pode parecer estranho vê-lo rindo na véspera de morrer, mas assim o cineasta salientava a alegria de dar a vida pelos outros.
De fato, Jesus aconselhou seus discípulos a manterem um coração de criança. Na Idade Média, o místico ocidental Mestre Eckhart ensinava que “cada um de nós tem uma dimensão mística. Esse ser místico é a criança que existe dentro de nós”. Do mesmo modo, Santa Mectildes, uma abadessa beneditina se expressava assim: “Deus conduz a criança que existe dentro de nós de maneira maravilhosa. Leva-a a um local secreto e brinca com ela. É, então, importante que cada pessoa escute dentro de si mesma esta voz divina que afirma: “Eu sou teu companheiro de brinquedos. Tua infância é a companhia para meu Espírito. Nas formas mais maravilhosas, conduzirei a criança que existe em ti, pois te escolhi”.
Seja você uma pessoa religiosa ou não, acolha o convite divino para entrar neste jogo de crianças e faça da vida o que os orientais chama de leela, uma brincadeira que rompe com a seriedade formal de quem se acha muito importante, relaxa o espírito e nos põe em sintonia de amor com todas as criaturas.

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