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domingo, 24 de abril de 2011

UMA REFLEXÃO PASCAL



por ASSUERO GOMES





Muitos de nós devem achar estranho, especialmente aos olhos de hoje, a teologia do sacrifício pascal, que enfoca a morte de Jesus após terríveis sofrimentos como algo necessário para a salvação da humanidade pecadora. Um Pai que aceita o sacrifício do Filho para se reconciliar com essa humanidade decaída.


Há uma imediata rememoração do sacrifício de Isaac (que significa ‘o sorriso de Deus’) que Abraão realizaria sem questionar, não fosse a interferência do anjo no último momento, substituindo o jovem por um cordeiro.


Por sua vez o quase sacrifício de Isaac nos remete aos sacrifícios de animais, geralmente os primogênitos dos rebanhos, do sexo masculino, sem defeitos congênitos, com as mais diversas finalidades, mas geralmente para expiação dos pecados ou como primícias ou ainda pelo nascimento de filhos.


Esses sacrifícios de animais foram uma evolução na concepção humana de Deus, pois substituíram o sacrifício de humanos, geralmente prisioneiros ou crianças separadas para tais cultos (até bem pouco tempo nas culturas maia e azteca), que por sua vez eram substituição do sacrifício dos próprios filhos primogênitos, aqueles que “abrem o útero” materno.
O que está por trás de tanta matança e tanto sangue praticamente em todas as religiões? Por que o ser humano associa o culto às divindades com oferendas de seres vivos, especialmente de humanos?


A ideia inicial é a de que haveria de ter uma “reparação” à divindade por ela ter criado e permitido a manutenção da vida na terra, e essa perpetuidade da vida só seria possível se as oferendas agradassem continuamente aos deuses. Isso criou uma casta muito poderosa de sacerdotes, pois só eles teriam o poder da intermediação, capaz de aplacar a ira divina e, por conseguinte a organização e a vida naquela cultura. Em muitas civilizações criaram uma cultura de “terror” chegando ao ponto de, por exemplo, os maias, realizarem mais de cinquenta mil sacrifícios humanos em questão de quinze dias, num verdadeiro show de carnificina, que a multidão extasiada apreciava em baixo das pirâmides.


Corpos decapitados e rios de sangue descendo pelas escadarias das referidas pirâmides, criando em seus seguidores um sentimento de “pertença” ao grupo daquela nação, fazendo com que se sentissem protegidos e abatendo qualquer ânimo de contestação do sistema. Acima da pirâmide estava o corpo de sacerdotes e logo acima deles o imperador e a imperatriz. Assim a organização do povo e de todo o sistema estava garantida. A segurança do estado assegurada pela religião oficial.


Uma coisa ainda mais profunda e tenebrosa aparece depois de iluminada pela psicanálise.
Os filhos masculinos têm inconscientemente o desejo de matar o pai, para tomar e ocupar seu lugar. Isso os gregos já sabiam há muito tempo, haja vista as várias e clássicas tragédias, em especial Édipo Rei. Inconscientemente também o sentimento de culpa se torna insuportável. Esse é um peso individual e coletivo. Fala-se até em um festim arquétipo onde os irmãos se reúnem, tramam e matam o pai. O medo do pai é algo tenebroso e obscuro nas mais profundas camadas do inconsciente, especialmente da criança. Aqui talvez nasça o sentimento de pecado (culpa) do ser humano.

A figura do pai terrível, vingador, que descobre todo e qualquer segredo oculto, que pode ver, estar e saber tudo, em todos os lugares, em qualquer tempo, está intrinsecamente associada à figura que fazemos de Deus. Um Deus inatingível, até insuportável diria.
Por isso não é de se estranhar que ninguém fique chocado com a matança dos primogênitos do Egito, pois ela está inserida no contexto de um deus forjado nos nossos temores mais profundos e nas nossas aspirações mais angustiantes.


Os rituais de passagem (pessach) requerem sangue, sempre sangue, pois em todas as culturas o sangue está relacionado à vida, não pelo conhecimento bioquímico das funções hematológicas, mas porque naquelas civilizações antigas como também na nossa, plena de violência, quando o sangue se esvai através de uma sangramento, a vida se esvai com ele.


O povo judeu substitui o sacrifício de passagem (da morte para a vida) pelo sacrifício do cordeiro (embora continue com as características do sacrifício do primogênito masculino) macho, primeira cria, sem defeito, que deverá ser morto sem a quebra de nenhum de seus ossos e sangrado segundo ritual restrito, morto ao final da tarde, e deverá ser comido compartilhado pela comunidade.

Mas como se reconciliar totalmente com um Deus que não mostra sua face, não permite que se faça alguma representação de sua pessoa, e cujo nome é uma incógnita “sou aquele que é” ou “estou aquele que está”? Como lhe oferecer sacrifícios ou construir uma morada onde se pudesse “contê-lo”, se toda carne é sua propriedade se todo espírito que a anima (sopro) é dele, e se toda a terra não é suficiente para que Ele repouse seus próprios pés? Como olhar para a face de Deus, olhos nos olhos, e não morrer?


Por essas ideias colocadas até agora, temos um esboço, do porquê a teologia do sacrifício pascal realizado em Jesus faz sentido e não é algo anacrônica, nem gratuita, nem ultrapassada, nem inócua. Ela é essencial.


Nas culturas orientais, especialmente na grega, a interlocução entre os homens e mulheres e os deuses era feita pelos semideuses, uma espécie de ser, meio homem, meio deus, geralmente fruto de uma relação carnal entre um deus do Olimpo e uma humana. Geralmente esses semideuses tinham características de super heróis e salvavam aqueles povos de outros povos inimigos ou da ira divina.


O Deus dos judeus é único. É Ele só. É auto-suficiente. Tudo foi criado por Ele e nele subsiste. Sem Ele nada há.


Como resgatar essa humanidade desse sentimento de culpa? Como mudar o conceito de pai que essa humanidade tem embutida no seu inconsciente que a atemoriza noite e dia?
Quando Jesus aparece nessa história aos seus não pareceu grande coisa. Mais um agitador naquela empoeirada região do fim do mundo romano. Mais um profeta no meio de tantos se dizendo enviado de Deus. Nem da cidade da elite sacerdotal era. Periferia de Israel. Poderia vir algo de bom da Galileia?


Pregando a iminência do Reino de Deus (um reino subversivo onde todos tinham o mesmo direito e o mesmo acesso aos bens, sem senhores nem escravos, sem sacerdotes, nem templos, nem reis). Pregando o perdão irrestrito sem necessidade de sacrifícios expiatórios, e essencialmente pregando o amor entre todos indistintamente.


Só quem percebeu o perigo desse novo pregador no primeiro momento, justiça se faça, foram os dirigentes do Templo. Nem os discípulos, nem os romanos, nem os escribas.
Morreria Jesus, sacrificado ao cair da tarde, estando a comunidade reunida, na sexta feira. Morreu sem ter os ossos quebrados, sendo aspergido com hissopo com vinagre, como se faz com o cordeiro, primogênito de Maria. E morreria ali mesmo e a história não teria nem registrado o fato, pois na última revolta de Espartacus, mais de três mil crucificados foram expostos nas laterais das vias romanas.


Houve uma experiência (ou várias) em que os amigos e alguns seguidores sentiram a presença de Jesus ressuscitado entre eles. Seguiram-se vários relatos.


Após o que, comunidades se formaram ao redor desses testemunhos e se tratou de resgatar a história dele adicionando suas experiências pessoais. Consequentemente construiu-se uma teologia que tentou explicar os fatos e as experiências vivenciados com ele.


A percepção de sua grandiosidade e profundidade foi sendo conhecida (revelada) de maneira paulatina, até a conclusão que Ele só poderia ser o próprio Deus encarnado, na pessoa do Filho. Daí a teologia do sacrifício do filho que resgata definitivamente toda a humanidade para sempre, se incorporar nele. Todo sacrifício que se fizer depois de sua morte e ressurreição é desnecessário, supérfluo e inócuo. Num último gesto de amor e loucura Ele permite que todos os homens e mulheres participem deste momento único na história da salvação, se dando em pão e vinho.

Assuero Gomes
assuerogomes@terra.com.br

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