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quinta-feira, 21 de novembro de 2019

LIBERDADE E JUSTIÇA SOCIAL




Frei Betto

        Na década de 1980, visitei com frequência países socialistas. As viagens decorreram de convites dos governos daqueles países, interessados no diálogo entre Estado e Igreja. Acreditavam que a Teologia da Libertação poderia contribuir nesse sentido.

        Do que observei concluí que socialismo e capitalismo não lograram vencer a dicotomia entre justiça e liberdade. Ao socializar o acesso a bens materiais básicos e direitos elementares (alimentação, saúde, educação, trabalho, moradia e lazer), o socialismo implantara um sistema mais justo que o capitalismo.

        Ainda que incapaz de evitar a desigualdade social e, portanto, estruturas injustas, o capitalismo instaurou, aparentemente, liberdades – de expressão, reunião, locomoção, crença etc. – que não se viam nos países socialistas.

        Residiria o ideal um sistema capaz de reunir a justiça social predominante no socialismo com a liberdade individual vigente no capitalismo? Ora, a dicotomia é inerente ao capitalismo. A liberdade que nele predomina não condiz com os princípios de justiça. Seus pressupostos paradigmáticos – competitividade, livre iniciativa, hegemonia do mercado – são antagônicos aos princípios socialistas (e evangélicos) de solidariedade, partilha, defesa dos direitos dos pobres e da soberania da vida sobre os interesses do capital.

        No capitalismo, a apropriação individual, familiar e/ou corporativa da riqueza é direito protegido por lei. E a aritmética ensina que, quando um se apropria em demasia, muitos são desapropriados. A opulência de poucos decorre da carência de muitos. A história da riqueza no capitalismo é uma sequência de guerras, saques, roubos, invasões, anexações, especulações etc.

        Hoje, a riqueza da maioria das nações desenvolvidas decorre da pobreza dos países ditos emergentes. Ainda agora os parâmetros que regem a OMC são claramente favoráveis às nações metropolitanas e desfavoráveis aos países exportadores de matérias-primas e mão-de-obra barata.

        Um país capitalista que agisse segundo os princípios da justiça social cometeria suicídio sistêmico; deixaria de ser capitalista. Nos anos 1980, fui questionado, ao proferir palestra em Uppsala, por que o Brasil, com tanta fartura, não conseguia erradicar a miséria, como fizera a Suécia. Perguntei-lhes: “Quantas empresas brasileiras estão instaladas na Suécia?” Fez-se prolongado silêncio. Naquela época, nenhuma empresa brasileira operava naquele país. Em seguida, indaguei: “Sabem quantas empresas suecas estão presentes no Brasil?” Todos sabiam que havia marcas suecas em quase toda a América Latina, como Volvo, Scania, Ericsson e a SKF, mas não precisamente quantas no Brasil. “Vinte e seis”, esclareci. (Hoje são mais de 100). Como falar em justiça quando um dos pratos da balança comercial é obviamente favorável ao país exportador em detrimento do importador?

        Se a injustiça social é inerente ao capitalismo, poderia alguém objetar: mas não é verdade que neste sistema o que falta em justiça sobra em liberdade? Nos países capitalistas não predominam o pluripartidarismo, a democracia, o sufrágio universal, e cidadãos não manifestam com liberdade suas críticas, crenças e opiniões? Não podem viajar livremente e até mesmo escolher viver em outro país, sem precisar imitar os refugiados mediterrâneos?

        De fato, nos países capitalistas a liberdade existe apenas para a minoria que dispõe de recursos. Para os demais, vigora a liberdade virtual. Como falar de liberdade de expressão de uma faxineira? É uma liberdade virtual, pois ela não dispõe de meios para exercitá-la.

        Por que os votos dessa gente jamais produzem mudanças estruturais? No capitalismo, devido à abundância de ofertas e à indução publicitária ao consumo supérfluo, qualquer pessoa que disponha de renda é livre para escolher, nas gôndolas dos supermercados, entre diferentes marcas de sabonetes ou sucos. Tente-se, porém, escolher um governo disposto a reduzir os privilégios dos ricos e ampliar os direitos dos mais pobres! Tente-se alterar o sacrossanto “direito” de propriedade (baseado na sonegação desse direito à maioria). E por que Europa e EUA fecham suas fronteiras aos imigrantes dos países pobres? Onde a liberdade de locomoção?

        Sem os pressupostos da justiça social, não se pode assegurar liberdade para todos.


Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
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