por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Dizem que, enquanto um terço da humanidade passa fome, há pelo menos outro terço que come mais do que o necessário e sofre de obesidade. E há outra expressiva quantidade de pessoas que vivem de dieta, fazendo regime para emagrecer, correndo atrás da última novidade para adquirir o corpinho das modelos que vê na televisão. Sem falar no outro grupo de pessoas que adoece e morre de anorexia. Por outro lado, há o jejum, praticado por motivos religiosos, sobretudo, mas também éticos e políticos.
Qual o sentido de jejum? O dicionário nos ajuda com algumas definições: abstinência ou abstenção total ou parcial de alimentação em determinados dias, por penitência ou prescrição religiosa ou médica; privação ou abstenção de alguma coisa.
Dentro de certas escolas filosóficas greco-romanas e fraternidades religiosas jejuar, como um aspecto de ascese, foi aproximado à convicção de que a humanidade tinha experimentado um estado primordial de perfeição que foi perdida por uma transgressão original. Por várias práticas ascéticas como jejuar, praticar a pobreza voluntária e a penitência, o indivíduo poderia restabelecer um estado onde a comunicação e a união com o divino foram tornadas possíveis novamente.
Consequentemente, em várias tradições religiosas, um retorno a um estado primordial de inocência ou felicidade ativou várias práticas de ascese julgadas necessárias ou vantajosas, provocando tal retorno. Para tal se agrupa a suposição subjacente básica de que aquele jejum era de algum modo propício para iniciar ou manter contato com Deus. Em alguns grupos religiosos (por exemplo, Judaísmo, Cristianismo e Islã) jejuar gradualmente se tornou um modo de expressar devoção e adoração a um ser divino específico.
Além da suposição subjacente básica de que jejuar é uma preparação essencial para revelação divina ou para algum tipo de comunhão com o transcendente ou o sobrenatural, muitas culturas acreditam que o jejum é um prelúdio em tempos importantes na vida de uma pessoa. Purifica ou prepara a pessoa (ou grupo) para maior receptividade em comunhão com o espiritual.
Dentro da tradição judaica um só dia de jejum foi imposto pela lei de Moisés, o Yom Kippur, o Dia do Perdão (Lv. 16:29-34), mas foram acrescentados quatro dias adicionais depois do exílio babilônico (Zac. 8:19), a fim de fazer memória de desastres que tinham acontecido. As escrituras judaicas fixaram o jejum dentro do contexto da vigilância no serviço de Yahveh (por exemplo, Lv. 16:29ff.; Jz. 20:26), e foi considerado elemento importante como preliminar para profecia (por exemplo, Moisés jejuou quarenta dias no Sinai; Elias jejuou quarenta dias quando foi ao Horeb).
No entanto, a Bíblia também entende o jejum em outra chave de leitura: a prática da justiça e a solidariedade com os oprimidos. O profeta Isaías, em seu capítulo 58, 3-10 diz:
De que nos serve jejuar, se tu não vês,
humilhar-nos, se não ficas sabendo?
Ora, no dia do vosso jejum, sabeis fazer bom negócio
e brutalizais todos os que por vós labutam.
Jejuais, mas procurando contenda e disputa
e golpeando maldosamente com o punho!
Não jejuais como convém num dia
em que quereis fazer ouvir no alto a vossa voz.
Deve ser assim, o jejum que eu prefiro,
o dia em que o homem se humilha?
Trata-se por acaso de curvar a cabeça como um junco,
de exibir na liteira saco e cinza?
É para isto que tu proclamas um jejum,
um dia favorável junto ao Senhor?
O jejum que eu prefiro, acaso não é este:
desatar os laços provenientes da maldade,
desamarrar as correias do jugo,
dar liberdade aos que estavam curvados,
em suma, que despedaceis todos os jugos?
Não é partilhar o teu pão com o faminto?
E ainda: os pobres sem abrigo, tu os albergarás;
se vires alguém nu, cobri-lo-ás:
diante daquele que é a tua própria carne, não te recusarás.
Então a tua luz despontará como a aurora,
e o teu restabelecimento se realizará o bem depressa.
Tua justiça caminhará diante de ti
e a glória do Senhor será a tua retaguarda.
Então tu clamarás e o Senhor responderá,
tu chamarás e ele dirá: Aqui estou!
Se eliminares de tua casa o jugo,
o dedo acusador o , a palavra maléfica,
se cederes ao faminto o teu próprio bocado,
e se aliviares a garganta do humilhado,
tua luz se levantará nas trevas,
tua escuridão será como o meio-dia.
Assim como o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, Jesus de Nazaré também relativiza o jejum formal (Mt. 6:16-6:18). E justamente porque o primordial é a prática da caridade. Vários textos neo-testamentários o demonstram (cf. Mt 6, 16-18), ao mesmo tempo em que afirmam que o dar de comer a quem tem fome não somente é o centro da mensagem evangélica, mas é critério fundamental para a salvação (cf. Mt 25, 36 ss).
Esta síntese cristã da prática ascética do jejum não desapareceu da espiritualidade cristã. Pelo contrário; tornou-se a prática ascética favorita dos monges do deserto. Homens e mulheres viram isto como uma medida necessária para livrar a alma dos apegos mundanos. A própria tradição cristã fixou e desenvolveu gradualmente jejuns sazonais, ou seja, próprios a uma determinada época do ano litúrgico.
Nos tempos que correm, onde o consumo é estimulado até o paroxismo, onde as ânsias viscerais e os frenesis possuidores se multiplicam, há vários jejuns que, se praticados, nos farão imenso bem. E refiro-me aqui não somente ao jejum alimentar. Mas ao jejum dos vícios, legais ou ilegais, quais sejam: o álcool, o fumo, a internet em quantidade desordenada e excessiva, o jogo, o consumo desenfreado. E tantos, tantos outros. Neste movimento de despojamento que o jejum dos impulsos vários que nossa ânsia consumista inventa e estimula, estaremos mais livres para receber e perceber as graças que Deus nos dá e as necessidades e dores que o irmão sofre.
Que um jejum sensato e criativo não seja uma prática em desuso para nós. Eis um saudável testemunho a dar neste início de milênio.
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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