por Maria Clara
Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Como sempre, o Papa Francisco
tocou no ponto sensível e expôs a ferida. Em carta ao arcebispo de Buenos
Aires, Monsenhor Mario Poli, o Pontífice o congratula pelo centésimo
aniversário da Faculdade de Teologia que se encontra na Universidade Católica
daquela cidade. Sublinha Francisco a feliz coincidência deste centenário
com o cinquentenário do encerramento do Concílio Vaticano II que, em suas
palavras, “foi uma atualização, uma releitura do Evangelho na perspectiva da
cultura contemporânea” e “produziu um movimento irreversível de renovação que
vem do Evangelho”.
Parece sugerir o Papa, de forma
muito oportuna, que esta coincidência não se dá em vão. A teologia – meta
linguagem sobre a Revelação e a Fé – não é nem pode ser simplesmente monótona
repetição de fórmulas dogmáticas. Nem muito menos fechada e sofisticada
reflexão acadêmica, tão intrincada e complexa que foge ao diálogo com as outras
disciplinas, assim como à possibilidade de compreensão das pessoas mais simples
que a procuram para aprofundar seu conhecimento de Deus. Deve ser um discurso
que encontra cidadania nos átrios da vida moderna e pós-moderna fazendo-se
ouvir e dialogando.
Um teólogo é, portanto, alguém
que deve viver na fronteira, dirá o Papa em sua carta ao arcebispo. Por um
lado, é sempre uma espécie de porta-voz da sua comunidade eclesial, pois fala
em nome dela. Mas também tem a função de questionar a fé e de avaliá-la de uma
forma que seja comunicável à compreensão da humanidade de seu tempo. Portanto,
um teólogo é alguém aberto, crítico e questionador, que não se esquiva de
envolver e integrar a fé (sua e de sua comunidade eclesial) neste processo.
Um
teólogo é, por isso mesmo, alguém que deve ter coragem de questionar a própria
fé, maturidade intelectual para assimilar as reflexões de outros teólogos que o
antecederam, interpretando-as e reelaborando-as. E também deve ter
sensibilidade para ouvir e sentir com a humanidade de hoje. Tudo isso sem
abandonar o método científico, que é próprio de todas as ciências e constitui
base mínima para uma reflexão rigorosa e séria.
Uma teologia em êxodo: eis o que
deseja o Papa. Uma reflexão que –pensada em comunhão com o povo de Deus -
tem cada vez mais se aventurado a pensar fora dos limites da instituição, em
plena sociedade, inserida no chão da história e da realidade, realizando um
serviço que passa pela construção da justiça e da paz, pela análise da cultura
e pelo alargamento da solidariedade entre os seres humanos. A indignação para
com a presença do mal no mundo, além de ser um motor apropriado para colocar em
andamento as engrenagens de uma sociedade mais solidária, é também o
combustível de propulsão para uma nova reflexão sobre Deus e seu agir no mundo,
uma nova leitura interpretativa da Bíblia e uma nova fonte de espiritualidade.
O Pontífice faz propostas
ousadas. Além de convocar a teologia para fora dos gabinetes e enviá-la
às fronteiras do mundo e da sociedade, conclama-a a “encarregar-se dos
conflitos”. E prossegue: “Não apenas (os conflitos) que experimentamos dentro
da Igreja, mas também daqueles que afetam todo o mundo e que são vividos nas
ruas...” Um bom teólogo, portanto, de acordo com o Papa, não é aquele que vive
dentro do imaculado e asséptico espaço de seu gabinete, rodeado de livros,
computadores e aparelhos de última geração. “Os bons teólogos, como os
bons pastores, cheiram a povo e a rua e, com sua reflexão, derramam unguento e
vinho nas feridas dos homens”.
Retomando algumas palavras-chaves
de seu pontificado, Francisco faz votos de que a teologia seja “expressão de
uma Igreja que é ´hospital de campanha’, que vive sua missão de salvação e cura
no mundo”. E deseja que a mesma seja “porta-voz da misericórdia”, pois
esta não é apenas uma atitude pastoral, mas a substância mesma do Evangelho de
Jesus. A teologia não é, então, apenas “intellectus fidei” (inteligência da
fé), mas sobretudo - e mais que tudo, como diz o grande teólogo
salvadorenho Jon Sobrino, “intellectus amoris” (inteligência do amor).
Interpretando a alocução do Papa,
chega-se à conclusão de que toda teologia é pública, embora nunca deixe de ser
confessional e eclesial. E o é no sentido de jamais poder confinar-se a
um espaço privado que a impeça de ir ao encontro das grandes questões públicas
e a elas procurar responder, em diálogo e interlocução com outras disciplinas e
saberes. Ser teólogo não pode levar à instalação em zona de
conforto. Ao contrário, pensar e falar de Deus é risco permanente e
implica acompanhar os processos culturais, sociais e políticos, especialmente
as situações e transições difíceis tal como o aconselha o Papa Francisco.
Bendito risco esse de ser
teólogo, que nos impede a nós todos e todas que um dia respondemos
afirmativamente a essa vocação, tornar-nos “intelectuais sem talento,
moralistas sem bondade ou burocratas do sagrado”, como adverte séria e
paternalmente Francisco de Roma. Bendito risco esse que nos abre à escuta
de uma Palavra que vem de Outro e que não nos fecha sobre nós mesmos, mas nos
lança ao mundo e aos outros, em atitude de serviço humilde e diálogo
constante.
A teóloga é autora de “Simone
Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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