por Marcelo Barros
De acordo com a
Constituição, o Brasil é um país laical, isso é, não tem nenhuma religião
oficial. Respeita a diversidade de crenças e defende a liberdade de todos os
cultos. Reconhece e garante os direitos de todos os cidadãos, religiosos ou
não, brasileiros e estrangeiros que vivam ou estejam entre nós, unidos pelo
laço comum de sermos cidadãos da mesma família humana e membros da comunidade
dos seres vivos que habitam o planeta Terra. No entanto, até as pedras sabem
que, ainda no Brasil de hoje, a religião continua a ter um poder imenso sobre
os destinos da sociedade e, uma vez ou outra, é usada para fins políticos e
interesses individuais ou grupais que nada têm a ver com o projeto da fé.
Nesses
dias, está novamente em discussão, um projeto de acordo entre a Igreja
Católica, representada pelo Vaticano e o Estado Brasileiro. Em tempos não tão
remotos, uma Concordata semelhante garantia alguns privilégios especiais para as
instituições católicas no país. Ao mesmo tempo, sabe-se que alguns grupos visam
tornar o Brasil um país de cultura “pentecostal”. Na Câmara, uma bancada de
deputados se auto-intitula “evangélica”. Sem maiores preocupações éticas e em
nome da fé, esses deputados vetam projetos que lhes parecem contrários ao modo
como eles compreendem ao pé da letra alguns preceitos bíblicos, enquanto fazem
questão de esquecer outros. E, ao mesmo tempo, como se fosse uma missão
sagrada, defendem os interesses das empresas que financiaram suas campanhas ou
de seus grupos ditos religiosos.
A
dificuldade de relacionar a laicidade dos Estados com as questões religiosas
não existe somente no Brasil. Atualmente, em vários continentes, aparecem sob a
forma de fortes tensões e violências. Em países como o Senegal e o Paquistão,
muitas pessoas foram feridas e algumas mortas em conflitos inter-religiosos. Na
Nigéria e em outros países africanos, dezenas de Igrejas cristãs,
principalmente evangélicas, foram incendiadas e muitas pessoas foram
assassinadas. Cristãos africanos pagaram um preço alto porque alguns jornais da
Europa, considerada pelos muçulmanos fundamentalistas, como cristã, insultam
Maomé e os princípios da fé islâmica. Da mesma forma, minorias islâmicas são
discriminadas e perseguidas em alguns países da Europa e em algumas regiões da
Índia. Na Irlanda ainda persistem conflitos culturais e políticos que se manifestam
como divisão entre católicos e protestantes.
Na Europa ocidental,
uma boa parte da sociedade política e cultural considera que as religiões estão
moribundas ou mesmo acabadas. Por isso, sentem-se com o direito de insultar a
fé das pessoas e usar o nome de Deus como motivo para chacota e caricaturas de
cunho pornográfico e de baixo calão. E defendem esse modo de proceder como
direito e liberdade de expressão. Em nome da laicidade, o governo francês
proíbe que a mulher muçulmana use o véu islâmico nas ruas e ambientes públicos.
No entanto, as freiras católicas viajam de trem ou avião, com o véu religioso e
nenhuma foi acusada de desrespeitar a lei.
Arautos do
Capitalismo veem nesses conflitos um choque de civilizações. Na verdade, é
apenas um choque de cinismos e simplificações racistas. No Brasil, feriados
religiosos ainda são impostos a todo país, mas contanto que eles sejam
católicos. Em muitos lugares, para não perder o emprego, adventistas do sétimo
dia são obrigados a trabalhar no sábado. E quase a cada dia, um templo de algum
culto afro-brasileiro é vítima de violência e preconceito.
Ao celebrar nesses
dias a Quaresma, as Igrejas mais antigas leem textos do evangelho como as
acusações de Jesus contra os sacerdotes do templo que exploravam viúvas pobres
e ensinavam que Deus precisa de sacrifícios para abençoar e proteger as
pessoas. Jesus revelou que o mais sagrado de tudo é a vida. Deus mora no
coração de todas as pessoas humanas e pede a cada um/uma de nós descobri-lo no
outro, no respeito às outras culturas e religiões, como no cuidado com a
natureza e na comunhão com todo ser vivo.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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