Amigos!
Amigas!
Agradecemos a Mônica Muggler
pela partilha deste artigo de Comblin, acerca da reconciliação.
Fraternalmente,
Alder
Extraído do Artigo “A nova Evangelização da América
Latina e o caminho da Reconciliação”, José Comblin – publicado
na revista Convergência, novembro 1988.
O tema da reconciliação é central na Bíblia. Deus
reconcilia-se com o seu povo: este é o evangelho. O evangelho é o anuncio desta
reconciliação. No entanto há um problema. No vocabulário ordinário, a
reconciliação usa-se em outros sentidos. Há muitos usos da palavra. O mais
popular é naturalmente o que se refere às brigas entre famílias ou indivíduos.
Nas santas missões, os missionários preconizam o dia da reconciliação Nesse dia
os inimigos de sempre fazem as pazes. Os que nunca conversavam, rompem as
barreiras. As famílias esquecem os seus ressentimentos tradicionais. A
reconciliação é um grande ato de conversão. Certamente esta reconciliação entre
indivíduos e famílias é uma das mediações pelas quais Deus se reconcilia com o
seu povo.
A reconciliação, porém, pertence também ao
linguajar da politica. Ora, na política a palavra reconciliação está sempre
ligada a um contexto específico. A reconciliação pertence ao mesmo discurso que
a paz. A paz é uma das grandes metas da política. Todos querem a paz. Mas a paz
como tema pertence, sobretudo à ideologia da dominação e dos impérios. A pax
romana foi um paradigma. Cada império, porem, defende a sua causa
invocando a paz de uma ou outra maneira. A paz está ligada à ordem,
grande lema do império bizantino. Os impérios do presente não pregam menos a
paz do que os anteriores.
Ora, a paz romana, como já dizia Santo Agostinho, é
apenas a máscara que esconde uma imensa operação de banditismo: uma cidade
conquistadora explora e domina o mundo inteiro. Quem mais oprime, mais fala em
paz e reconciliação.
Quando as classes dominantes de uma sociedade
sentem que o seu poder é contestado, apelam para a paz e a reconciliação.
Quanto mais opressores, mais entusiasmados pela paz e pela reconciliação. A paz
e a reconciliação servem como legitimação da injustiça estrutural. Os
dominadores praticam a chantagem da desordem. Pregam que se o seu domínio ficar
abalado, haverá desordem, anarquia, confusão: se nos tiram os nossos
privilégios, o país será ingovernável, como dizia um presidente.
Nessa reconciliação as vitimas tem que se resignar.
A reconciliação consiste nisto, que os oprimidos deixem de exigir os seus
direitos, que as vitimas deixem de se queixar. O preço da reconciliação é pago
pelos fracos e pelos dominados.
O apelo à reconciliação vem sempre das burguesias e
das aristocracias privilegiadas. Quando as Igrejas pregam a reconciliação, elas
se tornam consciente ou inconscientemente porta-vozes das classes dominantes.
Pois o tema da reconciliação é eminentemente ideológico. Pregar a reconciliação
é tomar partido pela ideologia dos privilegiados que nada querem ceder dos seus
privilégios.
Os dominadores apelam para a reconciliação também
porque sabem que essa palavra tem profundas ressonâncias religiosas. Querem
enganar os simples, como se a resignação dos dominados fosse a condição de
realização do plano de salvação de Deus. É um caso típico de utilização
ideológica do cristianismo.
A reconciliação bíblica é uma realidade
escatológica: trata-se de um processo que somente será consumado no outro
mundo, na nova Jerusalém. Trata-se de uma longa caminhada. Nesta terra nunca
haverá reconciliação total, nunca serão superados os conflitos. Viveremos
sempre no meio de conflitos. Querer suprimir os conflitos é praticar uma
ideologia. Sempre é algo suspeito de ideologia. Quem quer suprimir os conflitos
são os privilegiados, os dominadores, os que exploram e querem abafar a voz dos
explorados.
A reconciliação bíblica entra na história humana
mediante mediações que precisam ser levadas em conta em toda a sua complexidade
e de acordo com a marcha dos tempos, seguindo os sinais dos tempos.
Não se estabelece a reconciliação negando os
conflitos, mas resolvendo-os. Ora a superação dos conflitos é uma caminhada
árdua e complexa que não depende apenas da boa vontade ou das intenções das
pessoas situadas nos polos opostos. O relacionamento entre os homens obedece a
leis e forças, a dinamismos e estruturas complexas que são próprios de cada
tipo de conflito. A cada tipo de relacionamento convém uma metodologia
diferente.
(...)
Os métodos que servem para reconciliar os sexos não
servem para reconciliar as raças humanas. Os antagonismos entre brancos e
negros, entre brancos e amarelos, etc., como na América Latina os conflitos
entre brancos e índios, obedecem a dinâmicas diferentes das dinâmicas sexuais.
Não se resolve um problema de luta racial como se resolve um problema de luta
social. Cada tipo de conflito tem a sua dinâmica e exige uma metodologia
diferente baseada no conhecimento das leis científicas que regulam esse aspecto
da realidade.
Os conflitos sociais foram amplamente observados,
estudados, interpretados durante os últimos duzentos anos. Foram, sobretudo, os
conflitos ligados à sociedade industrial com a sua clara divisão entre
proletários e donos dos bens de produção. Os conflitos na sociedade rural são
diferentes. Os conflitos na sociedade pós-industrial, em que o Estado
desempenha um papel predominante, e as funções terciárias superam de longe as
funções primárias ou secundárias, são também diferentes. Os métodos usados numa
sociedade industrial clássica não se adaptam a uma sociedade pós-industrial.
Nunca a boa vontade ou os bons sentimentos bastam. Geralmente não servem para
nada ou quase nada. É necessário conhecer bem os processos sociais, as técnicas
que permitem agir sobre eles e ser capaz de manipular as forças sociais em
jogo. Frequentemente os cristãos foram ineficazes no campo social porque
entraram na área dos conflitos com total ignorância da realidade e perfeita
inocência ou ingenuidade. Os sentimentos morais tem pouca influencia nos
conflitos humanos e podem provocar o resultado exatamente contrário ao que se
desejava.
Na América Latina, se queremos contribuir com a
superação dos conflitos e para uma reconciliação da sociedade, precisamos
primeiro alcançar uma percepção exata dos conflitos que existem. Quais são as
divisões existentes? Qual é a sua importância, a sua profundidade? Qual é o
tipo de conflitos que se apresenta? Quais são as analogias históricas que nos
permitem compreender melhor os conflitos que estão presentes?
Em segundo lugar, precisaremos conhecer as metodologias,
os processos adaptados a cada tipo de conflito. O sentimento moral ajuda pouco.
É preciso saber usar s ciências politicas ou sociais, usar a experiência, levar
em conta as limitações históricas. Em muitos casos, os conflitos não são
solúveis, mas é possível melhorar a condição de tal sorte que seja mais
suportável.
Quais são os conflitos na América Latina? Medellín,
Puebla, centenas de documentos eclesiais reconheceram o que também dizem
centenas de estudos sociais: a situação inicial da América Latina ainda não foi
superada. América Latina ainda é um continente dividido entre conquistadores e
conquistados. Uma pequena minoria dispõe de todo o excedente da produção, de
todo o poder político, de todas as vantagens de uma cultura superior. Esta pequena
minoria está associada ao capitalismo multinacional o que lhe garante segurança
e privilégios. Este é o conflito fundamental. Até que essa divisão radical seja
superada, até que sejam destruídos os privilégios da minoria dominante, pouca
coisa poderá ser feita no sentido de uma reconciliação. A concentração da
riqueza e do poder impede qualquer justiça social e qualquer ascensão das
massas.
Na atualidade, a minoria dominante sente os seus
privilégios ameaçados e multiplica os apelos à paz e à reconciliação. Invoca
uma ideologia de reconciliação para impedir uma conscientização das massas.
Pede a ajuda da Igreja para persuadir as massas e conseguir que continuem tendo
paciência como sempre. Promete resolver todos os problemas e afirma precisar
apenas de um tempo breve para trazer as soluções.
Outras sociedades já conheceram situações análogas
e conseguiram sair delas. Algumas fizeram-no por meio de revoluções violentas,
outras por meios mais pacíficos. Poucas vezes os povos podem escolher e a
história escolhe para eles. No entanto, alguma forma de interferência
voluntária sempre é possível. Os dominadores são cegos e quase nunca agem em
virtude de sábias previsões. Precipitam-se no cataclismo com cegueira total. Os
dominados pode ser mais ou menos sábios, mais ou menos voluntaristas, mais ou
menos pacientes e perseverantes. Mas não se pode falar em reconciliação
enquanto não se modifica o quadro geral em que se movem as nações
latino-americanas e enquanto não se modifica o relacionamento entre essas nações
e o centro dominante do capitalismo ocidental. A condição previa de qualquer
reconciliação é a transformação radical da estrutura da sociedade. Nisto
concordam plenamente Populorum Progressio, Medellín, Puebla. Laborem
exercens, Sllicitudo socialis. Não há reconciliação sem inversão
radical da estrutura implantada á 500 anos e sempre consolidada desde então.
Os planos de reconciliação propostos pelos governos
procuram prescindir do conflito fundamental, fazendo de conta que somente
existem conflitos menores, mais facilmente solúveis. A solução dos problemas
menores não será possível sem a mutação global prévia a todas as mudanças
menores.
Dentro da divisão fundamental, há também certas
divisões especificas, que diversificam o panorama global, mas não lhe tiram a
validade, pelo contrário, confirmam a validade do esquema global.
A questão negra é sistematicamente negada pelas
elites. Para os brancos não existe a questão racial e não há racismo na América
Latina. Essa negação permaneceu a regra no Brasil até a campanha da
fraternidade de 1988. É bem sabido que a própria campanha da fraternidade não
foi bem acolhida em todas as regiões do Brasil. Em certos lugares a campanha
foi marcada por expressões típicas de racismo que provocaram um protesto
explicito de um arcebispo negro na assembleia de Itaici de 1988. Em nome da
existência do problema racial, muitos brancos queriam impedir que os negros se
expressassem. Não queriam que os negros se reunissem, afirmassem a sua
identidade, a sua cultura, a sua religião. Os negros deveriam sempre apagar-se
no anonimato de expectadores da sociedade branca.
No Brasil e na América Latina, a questão
negra sofre uma repressão consciente e, mais ainda, inconsciente. O conflito é
reprimido, mas permanece como uma exigência apesar da repressão. Não se chega á
reconciliação racial negando o conflito. Neste caso particular, a primeira
condição da reconciliação será permitir que o conflito se manifestasse
explicita e publicamente. A pura repressão nada resolve.
A questão indígena é tão grave como a questão
negra. Os indígenas são também negados. Os latino-americanos acham-se todos
descendentes dos índios. A indianidade teria sido absorvida totalmente numa
população mestiça. Desse modo o índio teria desaparecido. Existiria apenas
perdido no homem mestiço. A partir desse postulado os índios são negados nos
seus direitos: não se lhes reconhece o direito à terra, à língua, à cultura,
nem sequer o direito à sua religião, porque se supõe que todos são simplesmente
católicos e devem contentar-se com aquilo que a Igreja Católica lhes oferece.
No haverá reconciliação com o índio apenas na
contemplação na natureza mestiça do latino-americano e na suposta cultura
mestiça do latino-americano. A reconciliação supõe que os índios possam
explicitar o conflito latente que os mantem numa situação de não-ser, de
não-cidadãos.
Os maiores conflitos da América Latina ainda não
foram explicitados. Ainda não se manifestaram. Os privilegiados, conquistadores
e brancos, queriam abafar os conflitos antes que se manifestassem. Queriam
falar em reconciliação antes que os oprimidos tivessem sequer a possibilidade
de mostrar a sua existência. Queriam uma reconciliação fundada na negação dos
problemas. Em tal situação, falar em reconciliação é pura armadilha. Antes que
se possa falar em reconciliação é preciso que se manifestem as divisões que são
tão profundas que ainda não chegara ao nível da consciência.
Como falar em reconciliação entre brancos e negros
se a maioria dos negros ainda não chegou à consciência da profunda rejeição de
que são vítimas? Como falar em reconciliação quando a maioria dos camponeses e
operários explorados ainda não chegou à consciência do sistema que os explora?
Como falar em reconciliação quando as imensas massas de desempregados,
biscateiros, favelados ainda não sabem porque foram rejeitados fora da
sociedade? Somente pode haver reconciliação na base do reconhecimento da
verdade. A América Latina ainda deve passar por uma longa fase de
conscientização antes que se possa falar validamente de uma reconciliação a
nível político e social.
A Igreja poderia antecipar alguns sinais de
reconciliação. A Igreja não é capaz de substituir a história ou de reconstruir
outra história. Está subordinada aos tempos e aos momentos. Mas ela pode em si
mesma anunciar a reconciliação futura dando alguns sinais.
Por exemplo, a Igreja poderia abrir-se para os
pobres. Poderia começar a ser algo de Igreja dos pobres. Poderia abrir espaço
para os pobres para que estes se sentissem mais à vontade no recinto eclesial.
Isto acontece em algumas comunidades de base, raramente acontece nas paróquias,
não acontece nos colégios e universidades católicas. Até agora o clero
constitui uma classe privilegiada que não traz a marca dos pobres. Para poder
presidir a eucaristia é preciso ter passado da classe dos pobres para uma
classe privilegiada. Uma transformação social e econômica é a condição prévia
para ser ordenado. Terá que ser sempre assim? Da mesma maneira as congregações
religiosas tem um modo de ser e de viver que responde aos cânones da classe
média, inclusive muitas vezes de uma classe média alta. Tem que ser assim
necessariamente? Enquanto for assim faltarão os sinais de uma futura
reconciliação.
A Igreja poderia dar o sinal de uma reconciliação
entre brancos negros. Poderia permitir que os negros tivessem as suas reuniões,
as suas expressões culturais, a sua liturgia, a sua organização. Poderia então
haver diálogo, intercambio, troca. Não há dialogo quando o outro não pode
expressar-se. A Igreja poderia abrir-se para cultura negra. Poderia abri espaço
para as expressões religiosas do patrimônio negro. Poderia abrir-se para as
riquezas das religiões afro americanas. A Igreja poderia ter mais bispos
negros, mais sacerdotes negros, mais religiosos e religiosos negros. Poderia adaptar
as condições de admissão à situação cultural dos negros em lugar de impor a
todos um modelo branco. A Igreja poderia formar comunidades mistas em que
negros e brancos compartilhasse sem que um tivesse que ceder sempre ante os
valores do outro.
Na caminhada escatológica a Igreja está chamada não
a seguir o ritmo da história, mas a mostrar o caminho. Durante a época
colonial e ainda pós-colonial, a Igreja permaneceu prisioneira do mundo dos
colonizadores. Permaneceu latina e não chegou a ser americana. Poderia ser
menos latina e mais americana. Poderia reivindicar mais autonomia e mais
especificidade no conjunto da Igreja universal. Em lugar de ser cópia fiel das
igrejas européias, as igrejas americanas poderiam ser mais criativas e dar
espaço aos índios e aos negros. Se não fizerem assim, em lugar de ser uma força
de reconciliação, servirão para ocultar as divisões e servir à causa dos
dominadores, como tantas vezes elas fizeram no passado. No passado a Igreja foi
forçada pelos reis, pela força das potencias colonizadores. Dentro de uma
América que procura a sua independência, ela poderia ter a audácia da liberdade
e emancipar-se da dominação de uma cultura latina que os dominadores lhe impõem
para esconder o verdadeiro rosto do povo latino americano, esse rosto que
Puebla descobria num texto que ficou famoso.
A reconciliação é uma longa caminhada. Jesus diz
que não veio trazer a paz, mas a espada. Ele não promete paz e tranquilidade.
Haverá muitas lutas e muitas divisões não porque homens maldosos as estão
criando artificialmente, mas porque estão inscritas no passado são a herança do
passado. Carregamos o peso do pecado e não adianta querer negar esse pecado. A
reconciliação consiste em assumir as lutas necessárias em vista de uma
humanidade que consiga superar e não escamotear os seus problemas.
Os povos latino americanos sabem disto. A sua
evangelização parte desse mundo e dessa história. Se o evangelho está no clamor
dos oprimidos, ele se situa no coração das lutas e das divisões. Proclama a sua
confiança numa reconciliação final, mas não tem ilusões quanto aos prazos. Os
discursos apocalípticos de Jesus também não deixam ilusões. Haverá muitas
guerras e muitas lutas. São os falsos profetas que dizem: Paz!
Paz! Paz! Os verdadeiros sabem de que tecido é feita a história
humana. Sabem os povos qual foi a vida que viveram os seus antepassados.
A Igreja, porém, é a luz que mantem a esperança no
meio das trevas. Ele é a luz que mostra o caminho no meio da angustia da história.
Ela traz os sinais que fortalecem os ânimos e alimentam a vida. O futuro
imediato da América Latina será como o seu presente: feito de sangue, de
lagrimas, de fome, de choro, de clamor. Bem aventurados os que choram,
porque hão de rir.
A reconciliação é a nossa tarefa: Não há
mais diferenças entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e
mulher. (Gl 3,28). Aqui na América Latina, não há mais diferença entre dono
de terra e boia fria, entre imobiliárias e favelados, entre branco e negro,
entre branco e índio, entre civil e militar, entre patrão e empregado, entre
homem e mulher. Não que as diferenças existentes sejam negadas ou
esquecidas, mas o que vai acontecer é que elas vão desaparecer. Haverá
transformações tais que tudo isso vai desaparecer. Bem sabemos que muitas lutas
serão necessárias antes de se chegar a isso. Porque os donos da terra não vão
dar a terra sem lutas, porque os patrões não darão participação aos empregados
sem lutas, porque os brancos não darão espaço aos negros sem lutas, porque as
imobiliárias não darão terra aos favelados sem lutas, porque os civis não
submeterão os militares sem lutas, porque os homens não reconhecerão a
dignidade da mulher sem lutas.
A Igreja dará sinais. Por causa dos sinais será
acusada de incentivar as lutas em lugar de pregar a reconciliação. Mas ela não
se deixará intimidar. A lembrança dos mártires impedirá que se torne covarde
diante dos poderosos. Saberá romper com os que querem ser os seus donos. Saberá
libertar-se para poder trabalhar pela libertação de todos.
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