por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Interrompo a série de reflexões que pretendia fazer sobre a Amoris
Laetitia, exortação do Papa Francisco após o sínodo da Família. Retomarei
na semana que vem, se Deus quiser. Mas, francamente, nesta semana não é
possível pensar, discutir ou falar sobre nada mais além do tristíssimo
espetáculo da votação na Câmara sobre o impeachment da presidente Dilma
Rousseff.
Durante todo o processo que desembocou naquela patética sessão, procurei
eximir-me de entrar em discussões e debates acalorados, seja pessoalmente, por
telefone, nas redes sociais, enfim, em todas as instâncias. Ajudou-me o fato de
estar fora do país a trabalho. Porém, após assistir a sessão de tantas horas,
julgando algo tão sério como o impedimento da presidente da República, e
constatando o nível baixo do comportamento, das atitudes e das palavras daqueles
que são representantes do povo, por ele eleitos, não posso deixar de fazê-lo.
Meu sentimento é de vergonha dos deputados do meu país, com raras exceções.
Seus depoimentos ao microfone, em lugar de serem discretos e objetivos,
invocavam a mãe, o pai, os filhos, netos, bisnetos e o que mais houvesse de
parentes e familiares. Outros invocavam categorias mais abstratas: o
futuro, o país, o amanhã etc. Deus também teve seu Santo Nome várias vezes
pronunciado em vão. Como é possível tamanha falta de foco, tamanha negligência
e falta de respeito pela seriedade da decisão que ali se tomava? Como é
possível, isso sim, tamanha falta de compostura e decoro?
Minha sensação era a de estar
assistindo a um programa de auditório, como os da televisão brasileira da minha
juventude - o do Chacrinha, por exemplo - que hoje se reeditam em vídeo
cacetadas etc. Com a diferença que não tinha a menor graça. Era
lastimável de assistir. Um coletivo que deve agir com dignidade e nobreza
gritando ensandecido, chegando inclusive a agressões verbais e físicas.
Tudo isso seria tolerável, porém,
se não houvesse um clímax de absurdo e falta de sentido que reduziu tudo o mais
a menor importância. Refiro-me ao voto do deputado Jair Bolsonaro.
Além de fazer abertamente a analogia do impeachment de Dilma Rousseff ao golpe
de 1964: “Perderam em 64, perderam em 2016”, pronunciou-se em favor da ditadura
militar. Foi um insulto a todas as pessoas que viveram aqueles anos de
chumbo – entre as quais me incluo – e que viram o país ser reprimido e
censurado, um período de medo e terror.
Na universidade havia espiões que
não era possível identificar. Misturados aos alunos, eles ficavam atentos
ao que era dito para depois delatar implacavelmente os “subversivos”, como
classificavam os que se opunham ao governo militar e passavam a ser perseguidos
e deviam esconder-se para não cair sob as garras do terrível DOI-CODI e passar
pela tortura ou serem mortos.
Os jovens se escondiam sem que as famílias
soubessem seu paradeiro. As prisões eram arbitrárias e o medo reinava e
fazia o ar pesado e opaco. Tudo isso vivemos, deputado. E o senhor
tem a coragem de, em um momento tão grave como o atual, fazer uma homenagem
àqueles tempos terríveis de nossa história recente?
Mas não parou por aí a atitude
inexplicável do deputado Bolsonaro. Resolveu personificar sua homenagem à
ditadura militar na sinistra figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
ligando-o explicitamente a Dilma Rousseff, que por ele foi torturada. Não
foi apenas a presidente que passou pelas mãos nefastas de Ustra. Muitas
outras a seguiram, Sonia, Dora, Iara, Inês...tantas...tantas...Algumas morreram
na tortura. Outras escaparam e foram trocadas por diplomatas sequestrados
pelos movimentos de esquerda. Todas levarão até o tumulo as marcas de
Ustra e sua sanha sádica e perversa. Entre elas figura uma grande amiga
minha, de infância, querida e amada. Penso nela e no coronel Ustra e o
nojo se mistura à indignação.
E o deputado Bolsonaro homenageia
este torturador. Onde estamos? Onde está o respeito pelas vítimas de
Ustra, essas mulheres, agredidas e humilhadas pelo torturador? Onde está
a dignidade cívica do deputado? Não sabe que defender a tortura é
crime? Fazê-lo em plena sessão do Congresso Nacional, além de crime é de
um mau gosto macabro e a toda prova.
O dia seguinte a esse triste
espetáculo foi de tristeza e profundo desânimo. E percebi não serem
apenas sentimentos meus. Gente que se engajou de corpo e alma na batalha
da democracia, de um lado ou de outro, estava muda, calada. Não houve
comemorações. A vitória de alguns não teve o sabor inebriante que
esperavam. A derrota de outros não chegou a produzir raiva e sim
cansaço.
Na verdade, é de se
perguntar: terá havido vencedores? Parece-me que o triste espetáculo
que resultou na abertura ao processo de impeachment da presidente Dilma
Rousseff ostenta apenas vencidos. Vencidos estamos todos, brasileiros que
olhamos para a frente e não vemos futuro. Vencidos todos obrigados a
presenciar a mediocridade e a falta de qualidade ética e humana da maioria dos
que nos representam na Câmara dos Deputados. Vencidos todos os que
sofremos e lutamos com uma sangrenta ditadura militar e vemos um deputado
eleito democraticamente homenagear um de seus mais cruéis protagonistas.
Que Deus volte seu rosto
misericordioso para nosso país. Antes de qualquer reforma – política,
fiscal, econômica – será preciso reformar nossos mais profundos
sentimentos. Não podemos legar às novas gerações a depressão que agora
ameaça tomar-nos o coração e roubar-nos a esperança.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia
e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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