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domingo, 28 de março de 2021

NEUTRALIDADE EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 


FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(26/03/2021)

 

     Um dia, narra o Evangelho de João, um certo fariseu chamado Nicodemos procurou Jesus, nas caladas da noite, confessou sua admiração e se propôs a um longo diálogo pessoal. Jesus o acolheu. Em um determinado momento da conversa, lhe disse: "Nicodemos, para entender minha doutrina, é necessário nascer de novo" cf.Jo.3,3ss. - "Como pode alguém voltar ao útero da mãe e nascer outra vez?", replicou Nicodemos. E Jesus estranhou que um doutor de Israel não compreendesse o sentido de suas palavras.

 

     Muitos anos depois, nas comunidades cristãs, nasceu uma lenda em torno deste episódio. Ela conta o seguinte: depois da ressurreição do Senhor, Nicodemos, novamente nas caladas da noite, foi ao encontro Dele. "Mestre, falou-lhe, preciso de tua ajuda neste momento. Dei-me ao trabalho de escrever um novo Evangelho sobre tua pessoa e doutrina. Dediquei-me a esta tarefa anos a fio, com todo afinco e muito amor. No entanto, ninguém está lendo, ninguém se interessa por ele, nem mesmo teus apóstolos. Vim pedir a tua interferência em favor da divulgação do meu Evangelho, ele te  fará mais conhecido e mais amado. Jesus respondeu: Nicodemos, meu amigo, tu me procuraste um dia às escondidas, lembra? no escuro da noite, com medo dos Sumos Sacerdotes. Onde estavas quando eu falava ao povo publicamente, nas ruas e praças? Onde estavas quando teus sócios, os fariseus, e os doutores da lei me levaram ao tribunal e me julgaram e me condenaram? Onde estavas quando me crucificaram? E agora queres divulgar um Evangelho para provar a tua fé? Não, amigo secreto, não posso te ajudar. Vai, antes, ter com Pedro, Tiago e João, escuta o que eles tem a dizer. Depois voltaremos a nos encontrar.

 

     A figura de Nicodemos tornou-se paradigmática, representativa de uma atitude moral frente aos grandes conflitos humanos, a qual chamaremos aqui de neutralidade.

 

     No tribunal da História os neutros tem sido julgados com grande severidade. Vejamos o que dizem alguns gênios do pensamento filosófico. Shakespeare: "ser ou não ser, eis a questão". Maquiavel: "quem fica neutro é sempre odiado pelos que perdem e desprezado pelos que vencem". Dante Alighieri: "em situação de graves conflitos, quem permanece neutro, merece o lugar mais quente do inferno".

 

      Estas duras sentenças não são mais duras do que outras registradas na Bíblia. "Que o vosso sim seja Sim, que o vosso não seja Não! O que passa daí é obra do Maligno" Mt.5,37. "Oxalá fosses  quente ou frio, mas porque és morno, nem quente nem frio, vou te vomitar para fora da minha boca" . Apoc.3,15-16.

 

     Estamos às vésperas da Semana Santa. Voltaremos a reviver os últimos acontecimentos da vida terrena de Jesus. Reviveremos aquela cena dramática diante do tribunal de Pilatos. O Procurador romano, demagogicamente, instiga o povo a tomar posição: "O que devo fazer com o Nazareno?" E a multidão, manobrada pelas autoridades religiosas, grita :

- Crucifica-o! Crucifica-o!

 

     Onde estava Nicodemos neste momento?  Mas não devemos reduzir a pergunta à memória do passado. Esta cena se repete sempre de novo. Onde estava eu? Onde estávamos nós? Onde estávamos quando o justo foi perseguido e condenado?  Onde estamos quando o povo é submetido à servidão e à exclusão?  Quando algum irmão, seja quem for, é abandonado à noite da solidão? Onde estivemos enquanto 300.000 compatriotas foram recrucificados?

 

     A neutralidade se revela em variados comportamentos. Imaginemos alguns que são encontráveis na prática religiosa:

 

     - Prometer para o futuro os milagres da fé em vez de realizar logo os milagres do amor.

     - começar uma homilia com protestos de indignação e terminá-la com apelos à resignação.

     - Amaciar as palavras do Evangelho, encobrindo a sua radicalidade.

     -  Orar o tempo todo para não ter tempo de ir à luta aberta.

     - Discursar sobre o amor do Pai para filhos que sofrem fome.

     -  Amar "todos os pobres da terra" como pretexto para não se comprometer com nenhum.

     - Levantar a bandeira branca da "paz pela paz", ignorando que a paz é fruto da justiça.

     - confundir com a virtude da prudência a cumplicidade do silêncio.

     - Tornar-se o maior revolucionário do mundo, on-line.

     - em resumo, dizer e desdizer, ser e não ser, sempre com o mesmo fim: não tomar posição.

 

 

     Se Jesus tivesse atendido ao conselho do amigo Pedro, às portas de Jerusalém, e voltado para sua casinha de Nazaré, e aí permanecido na tranquilidade, confessando e aconselhando seus fiéis, provavelmente teria vivido até os 80 anos. Contudo, sua obsessão era fazer a vontade do Pai. E  Ele tinha clara cinsciência de até onde o levaria sua fidelidade: "Vim a este mundo receber um batismo de sangue e minha alma está inquieta enquanto este batismo não se consumar" Lc.12, 4ss

     Foi este o preço da nossa Redenção.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

 

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