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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Como enfrentar o novo regime climático da Terra?

 Leonardo Boff


Ultimamente muitos me tem perguntado pelas razões de tantos eventos extremos que estão ocorrendo por todo o planeta: por que tantos tufões, ciclones, enchentes, nevascas, secas prolongadas e ondas de calor com cerca de 40C ou mais, seja na Europa e mesmo em grande parte de nosso país? Até alguns anos atrás os grandes centros científicos e mesmo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não tinham certeza sobre seu caráter, se era algo natural ou consequência da atividade humana. Lentamente a frequência dos eventos extremos  foi crescendo até a ciência reconhecer que se tratava de um fato antropogênico, quer dizer, resultado da ação humana devastadora da natureza.

Alguns cientistas projetaram a hipótese que depois se confirmou como teoria (verdade em ciência enquanto não for refutada) de que uma nova era geológica havia se instaurado. Chamaram-na com razão de antropoceno que seguiu o holoceno de onde vínhamos já há mais de dez mil anos. Significa que o meteoro rasante que destrói a natureza e compromete o equilíbrio do planeta é o ser humano, especialmente, o processo produtivo explorador.Hoje esta compreensão se naturalizou nos discursos científicos e também no meios de comunicação.

Alguns biólogos vendo o extermínio de espécies vivas em razão da mudança climática começaram a falar do necroceno vale dizer, da morte (necro em grego), em grande escala, de vidas; seria um subcapítulo do antropoceno.A situação tornou-se muito mais grave com a irrupção de grandes incêndios em muitas regiões do planeta, inclusive naquelas que se imaginava as mais únidas como a Amazônia e a Sibéria. Para tal evento, extremamente perigoso para a continuidade da vida na Terra, criou-se a expressão piroceno (em grego piros é fogo).

Estaríamos neste momento no interior de várias manifestações de desequilíbrios no sistema-Terra e no sistema-Vida que nos obrigam a a  colocar a pergunta: como será daqui por diante o curso de nossa história? A não se fazer mudanças corajosas e seguir pelo caminho percorrido até o momento, poderemos conhecer  verdadeiras tragédias ecológico-sociais. António Guterrez, secretário geral da ONU tem usado expressões duras, afirmando: “ou reduziremos drasticamente a emissão de gases de efeito estufa ou iremos ao encontro de um suicídio coletivo. Mais direto foi ainda o Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti: “estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salvará”(n.32).

O fato é que a Terra não é mais a mesma. O sistema de sua auto-sustentação em todas as esferas que compõe um planeta vivo, Grande Mãe ou Gaia, corre risco de entrar em colapso Os que anualmente calculam a Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot),  vale dizer, a redução crescente dos elementos mantenedores da vida, ocorreu  neste ano no dia 2 de agosto. Eles nos advertem, que  não podemos chegar a novembro porque aí todo o sistema planetário entraria em colapso.

 

Se tudo mudou, nós que somos parte  da Terra ou, mais corretamente,aquela porção consciente dela, também teremos que mudar  e incorporar aquelas adaptações que nos permitirão continuar sobre este planeta. Em que se basear para esta adaptação?

Seguramente a tecno-ciência é indispensável. Mas nela não se encontra a solução. Ela se ocupa com os meios. Mas meios para que fins? Estes fins constituem  aquele conjunto de princípios e valores que fundam uma sociedade humana e permitem um convivência minimamente pacífica, pois, largados aos seus próprios impulsos,os seres humanos podem se entre-devorar (superação da barbárie).

A fonte destes valores e princípios não se encontram em utopias conhecidas e superadas, em ideologias ou religiões. Para serem humanos, tais valores e princípios devem ser buscados na própria existência humana, quando observada com atenção e profundidade.

O primeiro dado: pertence ao DNA do ser humano como o mostrou um dos decifradores do genoma humano (J.Watson, DNA:o segredo da vida, 1953) o amor social. Por causa dele nos sentimos parentes com todos os portadores deste código, também nos seres vivos da natureza. Este amor social funda uma fraternidade sem fronteiras,constituindo a comunidade biótica e a sociabilidade humana. O cuidado essencial: desde a mais alta antiguidade  (a fábula 22 de Higino do tempo de César Augusto)  foi visto como a essência do ser humano e de todo e qualquer vivente. Se não for cuidado, garantindo-lhe os nutrientes necessários, fenece e morre. A isso pertence manter as florestas em pé e reflorestar as áreas devastadas. Está também em nosso DNA o sentido da interdependência entre todos. Todos estamos dentro de uma rede de relações e nada existe e subsiste fora deste complexo de relações Ele constitui a matriz relacional, perdida no modo de produção capitalista que privilegia a competição e não a cooperação e dá  a centralidade ao indivíduo, apartado de sua relação para com a natureza. Cabe também ao nosso substrato humano, a percepção da corresponsabilidade coletiva e universal, pois, ou todos se unem e se salvam ou se dilacera a realidade com o risco de tragédias ecológico-sociais sem fim. Esse senso de corresponsabilidade coletiva sustenta o projeto social mais promissor, capaz de salvaguardar a vida que ganhou forma no ecosocialismo (cf. Michael Löwy). Seria a humanidade junto com a comunidade de vida vivendo dentro da mesma Casa Comum de forma colaborativa e acolhedora das diferenças. Dentro desta Casa Comum coexistem os vários mundos culturais com seus valores e e tradições, como o mundo cultural chinês, indiano, europeu, americano e dos povos originários  entre outros. A  espiritualidade pertence também à existência humana originária que se compõe pela valorização da vida, pela compaixão pelos mais fracos, pelo cuidado por  tudo o que existe e vive e pela total abertura ao infinito, já que somos um projeto de infinitas possibilidades a serem realizadas. Esta espiritualidade não se identifica com a religião, embora esta nasça da espiritualidade, mas nos valores acima referidos.

 

Para alcançar essa forma de habitar a Terra, os humanos deverão reunciar a muitas coisas, especialmente ao individualismo, ao consumismo, à busca insaciável de bens materiais e de poder sobre outros. São adaptações obrigatórias, se decidirmos continuar neste pequeno e belo planeta  ou então enfrentaremos o conjunto das crise acima referidas que poderão, no seu termo, liquidar com a espécie humana.

Nesse sentido podemos falar de uma recriação do ser humano que se adaptou à nova fase da Terra aquecida e equilibrada num nível mais alto de aquecimento (entre 38-40C?). Ela colocará a vida em seu centro e tudo o mais a serviço dela. Como já foi dito, será a Terra da Boa Esperança, finalmente, a antecipação do mito dos povos originários: a Terra sem Males.

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu: Dignitas Terra: ecologa, grito da Terra-grito do pobre 1999; O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes, 2021: Habitar a Terra:qual o caminho para a fraternidade universal, Vozes 2022.

 

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