Por Maria
Clara Lucchetti Bingemer
O
Papa Francisco está de volta a Roma após sua viagem a Cuba e aos Estados
Unidos. Torna-se difícil dizer, entre os vários discursos que pronunciou, qual
o de maior impacto. Assim como em Cuba a tônica foi a da reconciliação,
parece-nos que nos Estados Unidos haveria que destacar seu discurso ao
congresso, onde foi aplaudido e ovacionado várias vezes.
Primeiro pontífice a falar no Congresso estadunidense, Francisco pronunciou ali
um discurso considerado histórico por todos os analistas. Tocou em todos os
pontos críticos da política interna e externa do país, não se desviando de nada
que pudesse ser mais conflitivo ou arriscado. Falou como imigrante, cuja
família veio da Itália para o sul do continente americano. E recordou aos
congressistas que ali todos ou quase todos partilhavam com ele da mesma
condição. Por isso, pediu o fim da “mentalidade de hostilidade” contra os
migrantes e a passagem a uma “subsidiariedade recíproca: “Não tenham medo
deles. Olhem seus rostos. Escutem suas histórias”, pediu aos
congressistas.
Não poderia faltar o tema do clima e do meio ambiente por ele tão bem tratado
em sua encíclica “Laudato Sì”. Com relação a este tema, que divide republicanos
e democratas nos Estados Unidos, Francisco afirmou ter o Congresso daquele país
um importante papel a cumprir na luta contra os danos e agressões ao meio
ambiente. Pediu “ações valentes” neste sentido, dizendo estar convencido
de que se pode fazer a diferença neste assunto.
O discurso avançava e o Papa ia adentrando cada vez mais profundamente em temas
polêmicos e candentes. Chegou a vez de tocar na ferida da pena de morte,
ainda tão presente e praticada nos Estados Unidos. Contra ela, o pontífice
falou claramente. Pediu sua abolição global, dizendo estar convencido de
ser esse o modo correto de agir, já que toda vida é sagrada. Neste ponto
colocou-se inclusive mais radicalmente em favor da vida do que o próprio texto
do Novo Catecismo da Igreja Católica, que admite o recurso à pena de morte se
for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o
agressor injusto.
A posição papal nesta negativa frontal a tudo que produz violência e que agride
a vida humana foi ainda reforçada com sua denúncia corajosa e veemente sobre o
comércio de armas. Ao perguntar-se diante dos representantes eleitos de um país
que ocupa o primeiro lugar no ranking mundial desse comércio “por que há tantas
armas mortais sendo vendidas àqueles que pretendem infligir sofrimento a
indivíduos e sociedades”, tocou fundo na causa primeira e maior de tal fato:
" Infelizmente, a resposta, como todos nós sabemos, é simplesmente por
dinheiro: dinheiro encharcado de sangue, frequentemente de sangue inocente.”
O mundo inteiro acompanhava, impressionado, o discurso sereno e corajoso de
Francisco. A força maior do que dizia, no entanto, não estava apenas com
ele. Invocou para acompanhá-lo quatro figuras humanas, quatro grandes
cidadãos daquele país que encarnaram os valores que podiam fazer face aos
contravalores que ameaçam hoje a vida e a harmoniosa convivência na grande
nação do norte.
O primeiro foi Abraham Lincoln, presidente norte-americano que defendeu a
liberdade e trabalhou incansavelmente para que a nação conhecesse uma nova
aurora de liberdade. O segundo, Martin Luther King, que assumiu como
ideal e objetivo de vida realizar o sonho de plenos direitos civis e políticos
para os afro-americanos. A partir do famoso e grande discurso de Luther
King no Alabama, “Tive um sonho”, Francisco se referiu aos Estados Unidos como
a terra dos sonhos e lembrou os migrantes, tantos homens e mulheres que acorrem
em massa ao país em busca da realização de um sonho que transforme suas
vidas.
A terceira foi uma mulher: Dorothy Day. Serva de Deus, em processo de
canonização, esta ativista norte-americana foi citada por Bento XVI em sua
homilia da Quarta-feira de Cinzas, imediatamente após a renúncia ao
pontificado, como modelo de conversão. Agora é resgatada por Francisco
como exemplo a seguir na paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos
inspirada no Evangelho.
Finalmente o quarto: um monge trapista, Thomas Merton, cujo centenário é
celebrado neste ano de 2015. Homem de oração e pensador que desafiou as certezas
de seu tempo, Merton, desde sua cela na Trapa, comunicou-se com o mundo inteiro
através de seus escritos, abrindo novos horizontes para a Igreja. Além
disso – lembrou o Papa – foi também um homem de diálogo, promotor da paz entre
povos e religiões.
Francisco terminou seu discurso sob uma chuva de aplausos. Mas fez sentir
ao congresso dos Estados Unidos que tudo o que dizia recebia seu sentido maior
da menção à nuvem de testemunhas que o rodeava. Chamou a atenção para o
fato de que uma nação é grande não quando é a mais rica do mundo, nem quando é
a maior potência mundial e possuidora da maior quantidade de material
bélico. Nem tampouco quando faz tremer os mais fracos e vulneráveis com
seu poder e a truculenta defesa de suas fronteiras.
Mas a grandeza de uma nação se torna patente quando defende a liberdade como
Lincoln; quando gera uma cultura que permite sonhar com a plenitude dos
direitos para todos, como fez Martin Luther King; quando se identifica
totalmente com a justiça e a causa dos oprimidos, como Dorothy Day; quando vive
uma fé que se faz diálogo e semeia paz como Thomas Merton.
Assim partiu Francisco, deixando atrás de si a mensagem da Carta aos Hebreus,
12,1: Portanto, também nós, considerando que estamos rodeados por tão
grande nuvem de testemunhas, desembaracemo-nos de tudo o que nos atrapalha e do
pecado que nos envolve, e corramos com perseverança a corrida que nos está
proposta.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, teóloga
e autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo
de descrença”, Editora Rocco.
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