Há outra crise da nossa
época que parece aumentar e bate à nossa porta todos os dias. Trata-se de
uma profunda crise ética. Embora a palavra seja uma das mais usadas
hoje em dia e encontremos comitês de ética em todas as instâncias das
instituições públicas e privadas, trata-se de uma ética que não obedece ao
paradigma que acompanha a humanidade desde a Antiguidade, aquela que propõe um
sistema de valores que configura a vida.
Nas épocas pré-modernas, a
Moral era teológica, ou seja, a Moral era Deus, sendo a fé atribuidora da
virtude. Assim, o homem estava a serviço de Deus, e não da humanidade, a qual
ficava em segundo plano. Com a chegada da Modernidade, foi desencadeado um
processo de desvinculação moral da religião, constituindo-se como um ponto
marcante no desenvolvimento secularizador. O indivíduo passa a ser o valor
soberano da Ética laica secularizada. Nesse contexto, o direito, e não o dever,
encontra-se na posição absoluta e preponderante.
Na chamada pós ou
tardo-modernidade, com a crise produzida pela razão moderna e suas
consequências, há uma mudança do papel do dever, com o seu gradual
enfraquecimento impositivo. O filósofo francês Gilles Lipovetsky reflete sobre
isso, procurando mostrar a passagem para uma sociedade pós-moralista na
contemporaneidade:
Na era pós-moralista, o
que campeia é uma demanda social por justos limites, um senso calculista do
dever, algumas leis específicas para defender os direitos de cada um - jamais,
o espírito de fundamentalismo moral. Pleiteamos, claro, o respeito à ética,
contanto que isso não demande a imolação de nós mesmos ou um encargo de
execução árdua. Espírito de responsabilidade, sim; dever incondicional, não!
Após o ritual mágico do dever demiúrgico, eis a fase do minimalismo ético.
Neste contexto de «crepúsculo
do dever» e da «ética indolor» - conceitos que G. Lipovetsky desenvolve -
apresentam-se fatores éticos de contraposição ao pós-dever, incrustado na
tendência pós-moralista, preponderantemente de busca de prazer a qualquer
preço. Isso foi levantado, em meados do século xx, pela ideologia consumista e
o seu incentivo à prevalência da identificação do consumo com o
sentimento de felicidade. Estamos perante uma sociedade hedonista em que «a
época da felicidade narcisista não se equipara à da máxima "é proibido
proibir", mas sim a uma "moral sem obrigaç ;ões nem sanções".
A moral, entendida como
extremamente individual, constitui-se em deveres para consigo mesmo. Ou seja,
visa ao aperfeiçoamento pessoal, realçando a autonomia individual. Não autoriza
atitudes sem restrições, pois isso implicaria a colisão com restrições éticas
outras, restabelecidas sob a égide da normatização da ética individualista. O
autor fundamenta suas afirmações discutindo questões abertas e candentes
do mundo de hoje, como a exaltação do direito à eutanásia, ao não limite da
vivência da sexualidade, ao comércio de órgãos e do corpo, à higiene e à est
ética do corpo, que atingem proporções desmedidas e inusitadas, ao desempenho
desportivo que se converte de esforço competitivo sadio em obsessão
mercantilizada, pelo qual passam somas de dinheiro de níveis absurdos ao uso de
produtos nocivos à comunidade, à pluralidade de parceiros sexuais e à
fragilidade dos vínculos e dos compromissos afetivos.
O trabalho deixou de ser
dever moral para com a sociedade e encontra-se ligado à satisfação pessoal, ao
reconhecimento profissional de um plano de carreira para o futuro. Os efeitos
do neoindividualismo estão presentes no campo do trabalho com sentimento de
mais direitos e menos deveres. Por conseguinte, um mínimo considerável de
trabalhadores falta ao emprego sem justificativa ou com atestados médicos
forjados. Trabalha com os olhos postos na aposentadoria, a qual, quando é
tocada para que a integração das novas gerações possa dar-se, provoca protestos
os mais exaltados e sem fundamentação. Não existe a mística do trabalho que
enobrece e transforma o mundo. Aí existe o confronto entre o individualismo
responsável, incutidor de regras morais, e o irresponsável, aquele que busca
fugir às regras responsabilizantes.
O poder não é mais
encarado como serviço, mas como ocasião de adquirir benefícios e privilégios
muitas vezes em detrimento da comunidade. O triste panorama do Brasil de
hoje desvela diante de nossos olhos o melancólico panorama de uma classe
política que perdeu totalmente a credibilidade porque perdeu a ética. Com
raras e honrosas exceções, usa a política como um trampolim para engordar seus
cofres e suas próprias contas bancárias, preferentemente em paraísos
fiscais.
Os mandatários das grandes
potências fecham ciumenta e freneticamente suas fronteiras para não ter que
receber em seus territórios os milhares de refugiados que, em desespero, fogem
do Oriente Médio, de países de extrema pobreza, e da morte certa, a fim de
reencontrar a vida no continente europeu ou nos Estados Unidos, para si e para
seus filhos.
Diante desta crise estamos
todos convocados e interpelados. Diante de um mundo onde a ética afunda
em crise absoluta como ainda viver valores e parâmetros que façam a vida humana
mais digna desse nome? Certamente é uma interpelação central da qual
ninguém pode desentender-se ou afastar-se.
Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de
"O mistério e o mundo - Paixão por Deus em tempo de
descrença", Editora Rocco.
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