por Maria Clara
Lucchetti Bingemer
O tempo em que vivemos
passa por várias crises. Uma delas é a cultural. Tempo feito de
incerteza, de insegurança a respeito de uma posição estável e sólida na
sociedade, ou de uma identidade clara, esse é o nosso quotidiano. Por isso, o
que é ou não certo, o que é ou não verdadeiro, hoje pluralizou-se… E os
filósofos debatem o assunto, construindo não uma teoria da verdade, mas uma
teoria das verdades, no plural, golpeando mortalmente o reino das certezas que
imperava antes.
E porque a pluralidade das
verdades deixou de ser algo contestável radicalmente é deixada para trás. E
devido à possibilidade de diferentes crenças poderem ser consideradas e
julgadas simultaneamente verdadeiras, e o serem de fato, a teoria da verdade,
que se situa no centro da atenção dos pensadores, hoje, parece ter perdido
muito da sua função de disputa em relação ao status de qualquer
conhecimento diferente do filosófico.
A cultura ocidental tem
sido duramente criticada – e com muita razão – por ser racista, sexista e
imperialista… Mas não se pode deixar de afirmar que também é uma cultura muito
preocupada pelo fato de ser racista, sexista e imperialista, etnocêntrica,
paroquial e intelectualmente intolerante. Ou seja, é uma cultura que não
gostaria de sê-lo, que não encontra mais referências seguras – como Deus, ou a
Verdade, ou a Natureza das coisas – ao seu alcance para assumir o que afinal
quer e/ou deve ser.
É precisamente esse
legado, ou parte desse complexo legado, que emerge hoje de forma crescente. Não
encontramos mais certezas ou verdades absolutas. Estamos em meio a uma
pluralidade em que nada é categoricamente afirmado e o chão foge-nos sob os
pés.
Enquanto os pré-modernos
eram ensinados a ver a diferença com equanimidade e a aceitar a pluralidade
preordenada das coisas como parte integrante da criação de Deus, a modernidade
ensina que é possível excluir algumas realidades e construir um mundo de acordo
com as próprias preferências, dentro do modelo de algumas ideias preconcebidas.
Assim, foram sendo erigidos os edifícios modernos das grandes narrativas,
cheios de certezas, conceitos rigorosos bem calcados e respaldados em relatos
sem brechas ou inseguranças.
Um dos grandes desafios da
pós-modernidade em que vivemos, talvez sem precedentes, é o fim disso que
acabamos de descrever. Ou seja, a diversidade e a pluralidade em que estamos
mergulhados, diversidade situada no interior de uma fraca, negligente e
impotente institucionalização de diferenças, com as suas resultantes
fugacidade, maleabilidade e curta sobrevida.
Se, antes, o desafio para
a questão da identidade humana era como construí-la consistentemente e como
dar-lhe uma forma que recebesse reconhecimento universal, hoje, o problema da
identidade emerge, sobretudo, da dificuldade de sustentar qualquer identidade
por um prazo mais longo, da virtual impossibilidade de encontrar uma forma de
expressão da identidade que tenha possibilidade de ser reconhecida por toda a
vida, e a resultante necessidade de não abraçar nenhuma identidade muito
estreitamente, a fim de poder abandoná-la da maneira mais rápida possível. Tudo
é passageiro, nada é certo ou firme. E o ser humano, que não tem vocação para o
caos ou a anarquia, sente-se perdido no meio desta situação.
Assim, a cultura torna-se,
mais que «valores» a defender ou ideias a promover, um trabalho a empreender
sobre todo o tecido da vida social, a fim de manter a máquina do consumo
oleada. «Trata-se de uma sociedade feita de “homens que querem ter alguma
coisa”, e cada vez menos de homens e mulheres que “querem ser alguém”.
Em meio a essa crise
cultural, as instituições que sempre compuseram o tecido social e promoveram a
cultura ocidental encontram-se reconfiguradas apesar delas mesmas. Assim
acontece com uma das mais tradicionais e fundamentais instituições: a familia.
Neste momento em que o Sínodo sobre a família acontece em Roma, a sociedade se
pergunta: que respostas trará para uma cultura movediça e líquida como a nossa?
São grandes as expectativas e maior ainda as esperanças.
Maria Clara
Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
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