Por Eduardo Hoornaert
“A Revista Caros Amigos publicou
recentemente o primeiro fascículo de uma coleção intitulada ‘Revoltas Populares
no Brasil’. O primeiro número dessa coleção deve estar nas bancas. Trata de
Canudos, sendo que a Coleção inteira, que deve sair aos poucos, vai abranger 12
temas. Diante da importância dessa iniciativa e especialmente desse número, com
o qual colaborei, publiquei no meu blog (www.eduardohoornaert.blogspot.com)
um texto intitulado ‘O enigma Canudos’, pois a questão de Canudos até hoje não
está sendo colocada como deve, principalmente por causa da interferência do
livro ‘Os Sertões’ de Euclides da Cunha, que continua servindo como a principal
referência. Eis o que me levou a redigir o texto que ora publico em meu blog.”
1. Cheguei a me interessar pelo
tema Canudos por ocasião de diversos simpósios organizados no Brasil e no
exterior (na Colônia, Alemanha, por exemplo) em 1997, por ocasião do centenário
de Canudos. Foi aí que percebi o quase consenso em torno da interpretação de
Canudos apresentada por Euclides da Cunha.
Naquelas comemorações, o autor
dos ‘Sertões’ era considerado por muitos uma autoridade ‘inconteste’ e isso me
estimulou a estudar o assunto. Hoje estou convencido de que o celebrado autor
continua colocando um biombo entre nós e Canudos. Em nenhum momento, ele
considera Antônio Conselheiro uma pessoa normal. Não poupa qualificativos para
desprestigiá-lo: o Conselheiro é um ‘heresiarca’, ‘desequilibrado mental’,
‘terribilíssimo antagonista’, estranho anacoreta de olhar sombrio, fulgurante e
monstruoso, um montanista (do século II) perdido em nosso mundo moderno, um
extravagante.
Estranhei o consenso em torno
desse autor: Maria Isaura de Queiroz chama o Conselheiro de ‘messias’ e nisso é
seguido pelo autor americano Ralph Della Cava. O mesmo acontece com o
romancista peruano Mário Vargas Losa (‘A guerra no fim do mundo’) e o
historiador americano Robert Levine (‘O sertão prometido’). Ambos seguem
Euclides da Cunha e Maria Isaura de Queiroz. Todos esses escritores parecem
esquecer que, na época em que se preparavam freneticamente as expedições contra
Canudos na cidade de Rio de Janeiro, soou uma importante voz destoante, a do
escritor Machado de Assis. Cansado de ouvir vitupérios contra Antônio
Conselheiro, ele escreveu no Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, as
seguintes palavras: ‘Conselheiro, que Conselheiro? Não me ponham nome algum. Um
que desafia a ordem e a lei e só com uma palavra de fé congrega três mil
pessoas é alguém’. Para Machado, o Conselheiro é ‘alguém’, uma pessoa humana
com quem se deve antes de tudo dialogar, que merece ser conhecido pelo que
realmente é. O famoso escritor carioca aconselha então que se forme uma
comissão para ir falar com o Conselheiro em Canudos. Machado de Assis vai ao
âmago da questão, mas ninguém quer saber de sua proposta. Os ânimos estão muito
excitados e sua recomendação cai no vazio. Não combina com o postulado
fundamental da guerra de Canudos: o Conselheiro é um desequilibrado perigoso
seguido por fanáticos ignorantes. Sem esse pressuposto, não há como fazer
guerra. Decepcionado, Machado de Assis deixa de tocar no assunto em suas
crônicas. Nesse episódio aparece uma síndrome que acompanha a história humana
desde suas origens e que René Girard chama de ‘síndrome do bode expiatório’. O
Conselheiro tem de ser sacrificado no altar da ordem e do progresso, senão a
república tem de mostrar sua verdadeira face que é a de um golpe militar.
Trata-se de destruir Canudos em nome da república, ou seja da ‘ordem’ e do
‘progresso’, a ordem burguesa e o progresso dos negócios. Em nome dessa ideia,
é permitido pisar em cima das vítimas de Canudos. Para os militares que
executam a vergonhosa e covarde campanha de Canudos e principalmente para os
políticos do Rio de Janeiro, o repórter-escritor Euclides da Cunha cai do céu,
pois ele consegue construir uma epopeia em cima dos fatos. O reino de Euclides
já dura mais de cem anos e nada prediz que esteja chegando ao fim. Eis o que me
levou a me interessar pela história de Canudos.
2. Uma coisa me parece
clara: se Antônio Conselheiro chegou a agrupar tanta gente, é que seu modo de
pensar e se comportar correspondia à cosmovisão do povo sertanejo. As pessoas
reconhecem no Conselheiro uma figura ancestral, cuja imagem passa de geração em
geração, basicamente fora do universo das letras, e remonta até os tempos
bíblicos, atravessando a Modernidade, a Idade Média e os séculos da igreja
grega (bizantina). Isso quer dizer que perdura no povo sertanejo um
cristianismo relativamente imune à helenização que atingiu de cheio as classes
cristãs letradas desde o século III (os autores alexandrinos) e que até hoje
marca nossa maneira de entender o evangelho, pelo menos entre pessoas letradas.
A chamada ‘religiosidade popular’, vivida predominantemente por iletrados, está
mais perto da cosmovisão bíblica, que a religião praticada por pessoas
escolarizadas. Essa religiosidade foca diretamente a contradição entre Deus e
Satanás.
Eis uma maneira de entender a
vida e o mundo que hoje nos parece estranha e uma explicação. Um véu de
incompreensão nos impede entender corretamente palavras como ‘apocalíptica’,
‘messianismo’, Satanás, anjo, demônio, céu, inferno, condenação, salvação. O
livro ‘O messianismo no Brasil e no mundo’, da autoria de Maria Isaura de Queiroz,
teve um grande sucesso, mas é baseado numa visão do messianismo que não
corresponde ao que os autores bíblicos pretenderam dizer. Conto um episódio
pessoal a esse respeito. Quando resolvi dar ao meu ensaio o título ‘Os Anjos de
Canudos’ (editora Vozes, 1997) e sugerir aos editores uma capa em que eram
representados dois anjinhos, alguns de meus leitores pensavam logo nos anjinhos
pintados nas igrejas. Não perceberam que, no desenho da capa de meu livro, os
anjinhos só eram aparentemente inocentes, pois estavam sentadas em cima do
enorme cano do famoso canhão da quarta expedição contra Canudos e estavam
colocando uma flor na boca do cano. Eram, na realidade, os anjos guerreiros de
Deus contra Satanás da literatura apocalíptica, os príncipes angélicos Miguel,
Gabriel, Uriel e Rafael, combatentes contra os demônios que governam a terra,
disfarçados em anjinhos de aparência inocente.
Pois por trás das imagens
apocalípticas, que nos causam estranheza, existe uma análise consistente da
sociedade. A linguagem bíblica de teor apocalíptico interpreta a
sociedade de forma lúcida. Pensando bem, será que o mundo não é dominado por
Satanás? Será que Deus não toma partido pelas vítimas de sistemas injustos?
Será que os ‘anjos’ não lutam a favor dos desvalidos?
Os sermões do Conselheiro estão
recheados de imagens bíblicas. Eles precisam ser lidos de forma
contextualizada, pois o linguajar do beato é uma sedimentação literária de
acontecimentos desde muito varridos pelos ventos da história. Os canudenses
entendem o que o beato prega, eles interpretam sua guerra como uma guerra de
Deus contra Satanás. As tropas que enfrentam são ‘do diabo’. As poucas palavras
que o cineasta Antônio Olavo ainda conseguiu resgatar, nos anos 1990, da boca
de parentes e conhecidos de sobreviventes, em seu filme documentário sobre
Canudos (baseado em 3 anos de pesquisa, viagens por 7 mil quilômetros e visitas
a 180 cidades do Nordeste), são de caráter bíblico: besta fera, anticristo, lei
do cão, Deus, Satanás, anjos, demônios, céu, inferno, condenação, salvação,
blasfêmia etc. Penso que é nesse sentido que, em sua pergunta, você fala em
‘ponto de vista teológico’. Realmente, tem muito a ver. Mas eu prefiro falar em
‘linguagem’, modo de se expressar. O que aconteceu (e continua acontecendo) é
que as classes letradas do Brasil não entendem a linguagem dos sertanejos
iletrados e acabam pensando que eles não pensam adequadamente. Alguns exageram
e dizem que os sertanejos não pensam de forma nenhuma, são simplesmente
fanáticos e ignorantes que pertencem ao passado, intelectualmente inferiores.
Nesse rol de qualificativos entram termos como ‘messiânico’, ‘apocalíptico’
etc., sem a devida averiguação literária. Imbuídas de ideologias modernas de
‘ordem e progresso’, ‘desenvolvimento’, ‘crescimento’ e ‘avanço’, as classes
letradas não deixam espaço para vastos setores deste país que não são tão
‘progressistas’ assim. Elas pensam que suas categorias são universais e
qualificam de ‘religiosidade popular’ qualquer outra maneira de pensar. O tema
é vastíssimo e aqui não é o caso de aprofundá-lo. Na mesma linha, Antônio
Conselheiro permanece enigmático, como mostra a sua iconografia, mesmo aquela
que pretende apresentá-lo de forma positiva. Ele nos vem apresentado como uma
pessoa que vive fora da realidade e com quem não se pode conversar. Não aparece
como uma pessoa normal.
3. Como escrevi acima, o
tema do messianismo tem sido aplicado pela maioria dos autores aos movimentos
oriundos no universo rural do Brasil. Em seu celebrado livro ‘O Messianismo no
Brasil e no Mundo’, Maria Isaura de Queiroz acentua a ‘irregularidade’ e
‘atemporalidade’ desses movimentos. Em que tipo de pesquisa a autora baseia
essas afirmações? A mesma pergunta pode ser feita a autores que procuram
entender Canudos por meio de categorias marxistas e descrevem essa cidade como
sendo uma sociedade sem classes, sem patrões nem empregados, onde se pratica o
uso coletivo das terras. Na realidade, Canudos era um conglomerado humano
normal, igual a qualquer cidade do interior do Nordeste: uma espinha dorsal
formada pela rua principal com casas de alvenaria, habitada por comerciantes
prósperos, que até faziam comércio (de couros) com o exterior, uma igreja
exorbitante em suas dimensões grandiosas (há muitos casos no interior do
Nordeste) e em torno os casebres dos pobres, de palma e adobe. Pobres e ricos,
como em todos os lugares. Mas é verdade que ali a fome não existia, e isso
explica o forte poder de atração exercido por Canudos. Os pobres vieram de todo
canto habitar ali e fizeram de Canudos, em poucos anos (entre 1889 e 1897), a
segunda cidade da Bahia, com aproximadamente 25 mil habitantes. Então Canudos
tem nada de messiânico, mas é um lugar onde as pessoas não passam fome.
4. É preconceituoso pensar que
Canudos incomodou as elites locais (os fazendeiros), pois é sabido que Canudos
organizava de vez em quando ‘mutirões itinerantes’. Um grupo de pessoas ia a
uma determinada fazenda da região para executar trabalhos de grande porte, que
exigiam muita mão se obra, como construir uma barragem, cavar um canal ou um
açude. Esses grupos ficavam por vezes longos meses nas ditas fazendas, comendo
a boa carne e tomando leite à vontade. O clima não era de tensão, mas de
colaboração. No início, a igreja tampouco se incomodou com Canudos. Inclusive,
os vigários do interior costumavam convidar Antônio Conselheiro para pregar nas
novenas do(a) padroeiro(a), o que rendia um bom dinheiro para as paróquias,
pois o povo corria de longe para ouvir o beato. O arcebispo da Bahia começou a
se incomodar quando um padre influente lhe disse que o Conselheiro era um
‘herege’. Ele mandou a Canudos dois frades italianos, novatos no Brasil, que
não entendiam nada do país e se comportaram de forma arrogante, desafiavam e
humilhavam os canudenses. De volta a Salvador, eles entregaram ao arcebispo um
relatório péssimo da viagem. Um detalhe vergonhoso: o arcebispo mandou um
recado ao ministro do interior, solicitando uma vaga num hospício de alienados
para o Conselheiro. Sabemos como era a vida (ou melhor: a morte) nos hospícios
desse tipo, no final do século XIX.
Quem se incomodou de verdade com
Canudos foram as lideranças militares do Rio de Janeiro, as forças
organizadoras da recém-criada república brasileira. No famoso sermão do
Conselheiro contra a república, ele disse que a república não vinha de Deus,
mas do demônio. Eis o que incomodou de verdade. Nos gabinetes do Rio
de Janeiro, essa maneira de falar só podia ser expressão de uma mente louca,
perigosa e enganadora.
5. Na década de 1990 aparecem
diversas tentativas no sentido de elucidar o enigma Canudos. Só comento aqui
brevemente o livro do historiador Marcos Antônio Villa, intitulado ‘Canudos, o
povo da terra’ (Ática, 1995) e o comparo com o filme documentário de Antônio
Olavo, já citado acima. Villa abandona logo a tentativa de se trabalhar com
fontes orais e alega que, após 1950, não há mais como encontrar pessoas que
vivenciaram os acontecimentos. Ele então descarta a ‘história oral’ e se dedica
exclusivamente à análise de documentos escritos, com competência. Mas, nos
mesmos anos 1990, o cineasta Antônio Olavo viaja longamente pelo sertão para
resgatar palavras diretas da boca de pessoas que têm alguma lembrança da
guerra, falam o linguajar do sertão e usam categorias linguísticas próprias do
povo sertanejo. Eis onde reside a diferença.
Enquanto o historiador Villa não
enxerga nenhuma possibilidade de trabalhar em cima de um material oral, o
cineasta Olavo consegue nos apresentar uma imagem de Canudos baseada no contato
direto com a realidade sertaneja. Temos razões para desconfiar, num conflito
como esse, das fontes escritas. Até que ponto essas fontes representam o modo
de pensar dos canudenses? Ou não o representam de forma nenhuma? Não repetem
sempre o mesmo ponto de vista? O resultado dessa indefinição
metodológica é que, mesmo após os esforços dos anos 1990, o enigma Canudos
persiste, o que não deixa de ser assustador, pois de um dia para outro pode
eclodir um episódio parecido, que provavelmente teria o mesmo desfecho, caso a
nação brasileira não consiga decifrar esse enigma.
6. Canudos está sendo apresentado
como uma epopeia, e isso também dificulta sua compreensão. A epopeia produz um
prazer estético, é capaz de atrair, apaixonar e emocionar, mas não é um gênero
literário apto a provocar um diálogo entre escritor e leitor, ao contrário do
romance e da novela, por exemplo. Paulo Freire acentua o valor pedagógico de
textos dialogais, textos que provocam as pessoas a pensar e assumir algum tipo
de compromisso em relação à tragédia relatada no texto. Ora, Euclides da Cunha
é um autor épico, ele conta uma grande história mas não questiona o leitor. É
nesse sentido que sou grato ao professor José Calasans, na época professor da
Universidade Federal da Bahia, pelo fato de me ter apontado o livro de Manuel
Benício, intitulado ‘O rei dos jagunços’, editado em 1899 pela Tipografia do
Jornal do Commércio no Rio de Janeiro. Eis um texto que desafia e mexe com a
gente, exatamente por ser escrito por alguém que teve de abandonar o campo de
batalha em Canudos por escrever textos que incomodaram os militares. Como
Euclides, Benício foi repórter no cenário da guerra, desta vez a serviço do
‘Jornal do Commércio’ (do Rio de Janeiro), mas suas reportagens não agradaram
ao Clube Militar do Rio de Janeiro e no dia 29 de julho de 1897, elas de
repente desapareceram das colunas do jornal. Os militares as achavam
‘inconvenientes’. No momento em que se abre espaço para discussão, a voz
autoritária intervém e suspende o diálogo por considerá-lo inconveniente.
Benício ficou decepcionado e amigos lhe aconselharam escrever um livro sobre
sua experiência. As informações históricas contidas em meu ensaio ‘Os Anjos de
Canudos’ provêm em parte do quarto capítulo do livro de Benício, uma espécie de
romance com base documental. Ali ele escreve como as famílias sertanejas
fecharam as casas quando viram o exército se aproximar. Eram tropas
estrangeiras a invadir seu mundo. Não são unicamente os canudenses que sentiam
as expedições militares como invasões violentas em seu mundo, mas os sertanejos
em geral. Ao revelar casos como esse, Benício desnuda as mentiras divulgadas
pela imprensa da época e desmascara a tese da ‘anormalidade sertaneja’. As
reações dos habitantes diante das tropas eram perfeitamente normais. Enfim, o
texto de Benício me parece apropriado para abrir espaço a uma discussão em
profundidade sobre Canudos e foi por isso que nele me aprofundei para escrever
meu ensaio ‘Os anjos de Canudos’ (Vozes, 1997).
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É
membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina
(CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas
origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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