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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DIA DOS MORTOS



Por Frei Betto
    
      Hoje é dia dos mortos ou finados, daqueles que findaram sua trajetória entre nós. Será, no futuro, o dia de cada um de nós. Quem ousa encarar este destino inelutável?

      O ideal de infinitude fomenta a cultura da imortalidade disseminada pela lucrativa indústria do elixir da eterna juventude: cosméticos, academias de ginástica, livros de autoajuda, cuidados nutricionais, drágeas e produtos naturais que prometem saúde e longevidade. Nada disso é contraindicado, exceto quando levado à obsessão.

      Conto sete amigos com câncer nos últimos anos. Um deles observou: “Outrora, era tabu falar de sexo. Hoje, é falar de morte.” Concordei. Antes, a morte era vista como um fenômeno natural, coroamento inevitável da existência. Hoje, é sinônimo de fracasso, quase vergonha social.

      A morte clandestinizou-se nessa sociedade que incensa a cultura da juventude perene. Sequer se tem o direito de ficar velho. Nós, que já temos acesso ao Estatuto do Idoso, somos tratados por eufemismos que visam a aplacar a “vergonha” da velhice: terceira idade, melhor idade etc. A usar eufemismos, sugiro o mais realista: turma da eterna idade, já que estamos próximos a ela...

      No tempo de meus avós, morria-se em casa, cercado de parentes e amigos. Hoje, morre-se no hospital, um lugar estranho, rodeado de profissionais cujos nomes ignoramos. A agonia é suprimida pelos avanços da ciência - o coma induzido, a medicação contra a dor. Não há choro nem vela nem fita amarela. O rito de passagem – unção dos enfermos, luto, missa de 7º dia, proclamas – está em extinção.

      “Morrer é fechar os olhos para enxergar melhor”, disse José Martí. As religiões têm respostas às situações limites da condição humana, em especial a morte. É um consolo e uma esperança para quem tem fé. Fora do âmbito religioso, entretanto, a morte é um acidente, não uma decorrência normal da condição humana.

      Morre-se abundantemente em filmes e telenovelas, mas não há velório nem enterro. Os personagens são seres descartáveis como as vítimas inclementes do narcotráfico. Ou as figuras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam crianças a matar sem culpa.

      A morte, frisou Sartre, é a mais solitária experiência humana, quebra definitiva do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego no seu contrário: o amor, a comunhão com Deus.

      A morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem adornos de condição social, sobrenomecracia, títulos, propriedades, importância ou conta bancária. É a ruptura de todos os vínculos que nos prendem ao acidental.

      Os místicos a encaram com tranquilidade por exercitarem o desapego frente aos os valores finitos. Cultivam valores infinitos. Fazem da vida dom de si – amor. Por isso, Teresa de Ávila suspirava: “Morro por não morrer.”

      Padre Vieira advertia no Sermão do 1º domingo do Advento, em 1650: “No nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, seremos filhos de nossas obras.” 

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.


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