Por Frei Betto
Hoje
é dia dos mortos ou finados, daqueles que findaram sua trajetória entre nós.
Será, no futuro, o dia de cada um de nós. Quem ousa encarar este destino inelutável?
O
ideal de infinitude fomenta a cultura da imortalidade disseminada pela
lucrativa indústria do elixir da eterna juventude: cosméticos, academias de
ginástica, livros de autoajuda, cuidados nutricionais, drágeas e produtos
naturais que prometem saúde e longevidade. Nada disso é contraindicado, exceto
quando levado à obsessão.
Conto
sete amigos com câncer nos últimos anos. Um deles observou: “Outrora, era tabu
falar de sexo. Hoje, é falar de morte.” Concordei. Antes, a morte era vista
como um fenômeno natural, coroamento inevitável da existência. Hoje, é sinônimo
de fracasso, quase vergonha social.
A
morte clandestinizou-se nessa sociedade que incensa a cultura da juventude
perene. Sequer se tem o direito de ficar velho. Nós, que já temos acesso ao
Estatuto do Idoso, somos tratados por eufemismos que visam a aplacar a
“vergonha” da velhice: terceira idade, melhor idade etc. A usar eufemismos,
sugiro o mais realista: turma da eterna idade, já que estamos próximos a ela...
No
tempo de meus avós, morria-se em casa, cercado de parentes e amigos. Hoje,
morre-se no hospital, um lugar estranho, rodeado de profissionais cujos nomes
ignoramos. A agonia é suprimida pelos avanços da ciência - o coma induzido, a
medicação contra a dor. Não há choro nem vela nem fita amarela. O
rito de passagem – unção dos enfermos, luto, missa de 7º dia, proclamas – está
em extinção.
“Morrer
é fechar os olhos para enxergar melhor”, disse José Martí. As religiões têm
respostas às situações limites da condição humana, em especial a morte. É um
consolo e uma esperança para quem tem fé. Fora do âmbito religioso, entretanto,
a morte é um acidente, não uma decorrência normal da condição humana.
Morre-se
abundantemente em filmes e telenovelas, mas não há velório nem enterro. Os
personagens são seres descartáveis como as vítimas inclementes do narcotráfico.
Ou as figuras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam crianças a matar sem
culpa.
A
morte, frisou Sartre, é a mais solitária experiência humana, quebra definitiva
do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego no seu contrário: o amor, a
comunhão com Deus.
A
morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem adornos de condição social,
sobrenomecracia, títulos, propriedades, importância ou conta bancária. É a
ruptura de todos os vínculos que nos prendem ao acidental.
Os
místicos a encaram com tranquilidade por exercitarem o desapego frente aos os
valores finitos. Cultivam valores infinitos. Fazem da vida dom de si – amor.
Por isso, Teresa de Ávila suspirava: “Morro por não morrer.”
Padre
Vieira advertia no Sermão do 1º domingo do Advento, em 1650: “No
nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, seremos filhos de
nossas obras.”
Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista
– uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.
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