Maria Clara
Lucchetti Bingemer
O Papa Francisco insiste na misericórdia. Foi na abertura da Porta Santa,
depois no Advento e no Natal. E, agora, na abertura da Quaresma continua
batendo na mesma tecla e toma como lema as palavras de Jesus no Evangelho de
Mateus 9,13: “Misericórdia quero e não sacrifício.” Não aparece, porém,
no lema – mas sim no tema e na intenção do Pontífice, certamente – o mandato
que antecede esta declaração: “Ide e aprendei o que isto significa”.
A alguns pode deixar perplexos a misericórdia ser o maior desejo de Deus e não
o sacrifício. Pois não nos ensinaram sempre que é importante fazer
sacrifícios, porque esses agradam a Deus? Os da minha geração certamente
perderam a conta de quantas tabelinhas de ramalhetes espirituais preencheram, em
folhinhas parecidas com as do jogo de batalha naval, dando conta de quantos
sacrifícios haviam sido feitos naquele mês. E esses sacrifícios
consistiam em privar-se de balas, ou rezar ajoelhada no chão frio durante
bastante tempo, ou passar um mês sem comer chocolates. Tudo isso para
agradar a Deus. E agora vem nos dizer que ele não quer sacrifícios e sim
misericórdia? Como assim?
Porque sabe disso, Jesus insiste. Sabe que não é espontânea em nós a
prática da misericórdia. Não é natural nossa inclinação para olhar o outro sem
julgá-lo, sem segregá-lo, sem classificá-lo com rótulos ou compartimentos que
sigam nossos padrões. Pelo contrário, é costume nosso olhá-lo de cima.
Pobre dele ou dela se não tem fé como nós, nem faz sacrifícios diários e miúdos
que acumulamos, acreditando assim economizar para uma eternidade mais
confortável ou mais brilhante.
Ganhar a salvação aplicando na poupança do sacrifício parece que não agrada a
Deus. Pelo menos é isso que diz seu Filho Jesus, o único que O conhece
verdadeiramente. E para reforçar ainda mais sua afirmação, Jesus o diz após ver
seu poder questionado por ocasião da cura de um paralítico, depois de chamar
para segui-lo um publicano mal visto entre o povo por ser desonesto e ladrão, após
ser criticado por comer com publicanos e pecadores.
Impressionante contexto, em que muitos de nós poderíamos identificar-nos
facilmente com os críticos de Jesus. Esclarecedora situação, em que
estaríamos certamente entre os que julgam sem cessar o próximo e por isso têm
muito que aprender em termos das preferências de Deus. Pois resulta que
ele não se compraz com nossos sacrifícios, oferendas e rituais, com os quais
pensamos comprar sua benevolência. Mas – pasmem! – deseja a misericórdia
incessante e permanente, uma atitude de vida que nos faca aproximar-nos do
outro com as entranhas carregadas de carinho, ternura e abertura total.
Mesmo que o outro não seja puro, nem justo, nem imaculado, segundo os cânones
oficiais.
Este é o aprendizado que somos convidados a encetar nesses quarenta dias de
conversão que o tempo da Quaresma nos proporciona. Não podemos entrar
nesse tempo como mestres da pureza e doutores da ascese, exibindo em praça
pública quão grande é o nosso espírito de penitência e sacrifício. Mas,
sim, estamos convidados e carinhosamente chamados pelo Senhor, em convite
reforçado pelas palavras de Francisco, a sermos discípulos da misericórdia,
procurando humildemente aprender a fazer dela nosso estilo de vida.
Em tudo a misericórdia deve perpassar-nos de alto a baixo. Deve inspirar
nossas palavras, fazendo-nos “sair dos círculos viciosos das condenações e
vinganças, que continuam a encadear indivíduos e nações", tal como disse o
Papa no Dia Mundial das Comunicações. A palavra do cristão, reiterou ele,
"propõe-se fazer crescer a comunhão”. Portanto, logicamente não pode
ser de juízo e condenação sobre o outro.
A misericórdia deve guiar nossos gestos. Estender a mão ao diferente,
ouvir o angustiado, erguer o caído sem condená-lo, procurar colocar-se no lugar
do outro para entender sua perspectiva e aprender com ela. O próprio Papa
começa dando o exemplo. Vai encontrar-se em Cuba com o patriarca Kiril,
da Igreja Ortodoxa russa, fazendo um gesto concreto que põe fim a uma separação
entre cristãos que já dura mais de mil anos.
Tudo isso é um delicado aprendizado. Para tanto, necessitamos da
disciplina quaresmal. E o tempo propício para aprender do próprio Deus,
que quer misericórdia e não sacrifício, que é misericórdia em Si mesmo.
Ao longo de toda a Escritura nós podemos ver e ouvir esse Deus desviando o
rosto das gordas oferendas rituais a Ele feitas com o coração carregado de
dureza e intransigência, com a vida pontilhada de cupidez e avareza. Não
é possível agradá-lo assim. Pois o que Ele quer é misericórdia.
Deus é Aquele que recebe o filho que se foi com festa nunca antes vista naquela
casa; que deixa para trás as noventa e nove ovelhas fieis e sadias para buscar a
que se perdeu nos espinhos do caminho por não seguir a voz do pastor. Em
Jesus, encarnação de sua misericórdia, Deus acolhe a adúltera sem uma palavra
de condenação; aceita com gratidão a homenagem do amor da pecadora pública que
entra no banquete do fariseu e banha com lágrimas e perfume seus pés cansados
da poeira da estrada; cura doentes, toca leprosos, abraça crianças, liberta os
pobres, faz os cegos verem, os surdos ouvirem e os coxos andarem. Olhando para
Ele aprenderemos que a misericórdia é maior que o sacrifício.
Aprender a viver na misericórdia é o convite a nós feito nesta Quaresma.
Que as Cinzas traçadas sobre nossa fronte na Quarta-Feira que inaugura o tempo
da conversão nos ajudem a crer neste Evangelho, nesta Boa Notícia: Deus
quer misericórdia e não sacrifício.
Maria Clara
Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A
teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por
Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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