Por Marcelo Barros
Misericórdia é uma palavra que tem
de ser resgatada do mau uso. Comumente as pessoas compreendem misericórdia como
um sentimento de piedade, jogado como esmola para quem não tem mais outro
remédio na vida. Compreendida assim, ninguém quer ser o coitadinho que precisa
da compaixão alheia para viver. No entanto, nas antigas tradições espirituais e
na compreensão bíblica, misericórdia é mais do que um sentimento. No século IV,
Santo Agostinho explicava que o termo latino “misericordia” vem de “miser cor
dare” que significa “dar o coração a quem precisa”. Isso significa empenhar-se
em cuidar do outro como compromisso afetivo e princípio de vida. Portanto, é uma
atitude permanente e que estrutura o modo de ser e de viver da pessoa. Implica a
solidariedade, mas esta vivida e praticada com o coração. Na cultura bíblica,
dizer que uma coisa é feita com coração não significa apenas “com sentimento”
ou “com afeição”, mas principalmente com o que hoje se chama de “inteligência
espiritual”, isso é, com totalidade ou inteireza do ser.
Infelizmente na nossa sociedade
atual, desde crianças somos formados para ser individualistas e indiferentes ao
sofrimento do outro. Mesmo entre povos, culturalmente abertos ao acolhimento do
outro, espalha-se uma cultura de violência que parece contaminar toda a vida
pessoal e coletiva. Vivemos em uma sociedade carente de valores que a mobilizem
positivamente e de um projeto de vida pelo qual valha a pena lutar e viver. Isso
torna o nosso mundo doente.
Nos tempos antigos do povo da
Bíblia, a Misericórdia era uma divindade feminina, concebida como um útero de
mãe. Deus era visto como Mãe sempre grávida de um universo novo. Como em
hebraico, o termo útero é rehém, a deusa se chamava: Rahamin, a divindade do
amor materno. Com o decorrer do tempo, o povo de Israel compreendeu que não se
tratava de uma divindade à parte, mas de uma forma como Deus se manifesta. E A
Misericórdia tornou-se um nome divino. No meio de uma cultura antiga, na qual a
dignidade da mulher estava em gerar e ser mãe, a misericórdia divina se
manifestava em tornar fecundas as mulheres estéreis. E várias das matriarcas da
Bíblia, como Sara, Rebeca, Ana e outras eram estéreis. Deus as tornou capazes
de ser mães para ser felizes e protagonistas de uma nova história. Era um modo
de afirmar algo que até hoje é para nós importante: Deus abre o útero de nossas
esterilidades e faz com que tudo aquilo que em nossas vidas parece fechado se
torne fecundo e dê início a uma vida nova. A misericórdia divina desmente os
prognósticos pessimistas do mundo e leva as pessoas que se sentem impotentes e
incapazes a serem portadoras de uma vida nova.
Paulo escreveu que a misericórdia
divina se manifestou na pessoa de Jesus. Pela doação de sua vida, o Cristo
ressuscitado reconciliou povos inimigos e abriu as promessas divinas feitas a
Israel para todas as nações, raças e culturas do mundo. Portanto, a
misericórdia não é apenas um sentimento pessoal e sim um projeto social e
político de mundo reconciliado e em caminho.
Nos evangelhos, Jesus manifesta essa misericórdia
divina ao curar doentes e testemunhar aos oprimidos que o reinado divino se
manifesta nesse mundo. Traz a todos justiça e libertação. Também nos
evangelhos, misericórdia é um projeto de vida nova que brota da secura, onde
parece que nada mais brotará. Na época de Natal, inspiradas em um texto do
profeta Isaías, as comunidades eclesiais cantam: “Da cepa (o ramo seco) brotou
a rama, da rama brotou a flor, da flor nasceu Maria e de Maria, o salvador”. Em
cada Quaresma, os cristãos celebram a renovação da misericórdia divina em uma
nova Páscoa.
Na América Latina dos anos 80, o
padre Jon Sobrino, um dos grandes teólogos latino-americanos, escreveu um livro
no qual propõe a misericórdia não mais como atitude apenas ocasional. “O
Princípio Misericórdia” é toda a vida organizada a partir do critério da
solidariedade, vivida com delicadeza. Diversos estudiosos pensam que o remédio
mais eficaz para nossa sociedade doente é o carinho humano manifestado nas
relações. Deus quer que sejamos misericordiosos com os outros, mesmo que eles
não sejam justos nem bonzinhos. Afinal, Deus nos trata com misericórdia e pede
que o sigamos nesse caminho. Jesus disse: “Quero a misericórdia e não o
sacrifício” (Mt 9, 9).
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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