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sábado, 27 de fevereiro de 2016

OUTRA CRIANÇA…

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



 Ele tem quatro anos e leva uma sacola na mão.   O olhar assustado percorre as areias do deserto e os funcionários da ONU que o observam e tentam ajudá-lo.  É sírio e chama-se Marwan.  Vagava no deserto sozinho quando foi encontrado depois de haver se perdido de seus pais durante a fuga da violência que dizima seu país.  Andava a esmo, errante pelo deserto hostil, sem saber para onde.  

Desde os tempos do Antigo Testamento o deserto é uma imagem poderosamente evocativa para o povo de Deus.  Se algo é concordância na exegese bíblica, é que o deserto é fundamental na auto compreensão que o povo de Deus tem sobre sua identidade.

Povo liberto pela mão poderosa de Deus, o povo de Israel teve que vagar longamente pelo deserto antes de finalmente chegar à terra prometida. Ali os hebreus libertos viveram a dúvida, a vulnerabilidade e a insegurança que os fez muitas vezes duvidar e desejar voltar à escravidão do Egito, onde pelo menos havia comida.
Estar no deserto é sentido como estar próximo da morte, longe da terra dos vivos, que depois se tornará a Terra Santa. Assim se entende a pergunta que faz o povo indignado a Moisés em Ex 14,11-12: Não havia sepulcros no Egito, para nos tirar de lá, para que morramos neste deserto? Por que nos fizeste isto, fazendo-nos sair do Egito?

Não é esta a palavra que te falamos no Egito, dizendo: Deixa-nos, que sirvamos aos egípcios? Pois que melhor nos fora servir aos egípcios, do que morrermos no deserto.

Beijo quente da fome e da sede, o deserto era visto desde muito cedo pelos israelitas como um lugar difícil e perigoso, vazio de pessoas, cheio de solidão.  Lugar de animais perigosos e demônios que tentam.  Na Bíblia, o deserto é muitas vezes sinônimo de desolação, e esta é fruto da destruição, sentida como abandono ou castigo de Deus.  O deserto, sobretudo no Antigo Testamento, é o contrário do paraíso; é o caos originário, no seio do qual nada se distingue e nada se pode perceber com clareza.

O deserto é igualmente o lugar da errância, do nomadismo.  Enquanto o povo andava pelo deserto, sem vislumbrar a terra da promessa, sofria com o desejo da estabilidade e da sedentarização que não vinham.  E assim como o ser humano rejeita e detesta o caos, que o atira na anomia e na anarquia para as quais não foi feito,  igualmente odeia e rejeita a errância e o vagar sem descanso e sem lugar para repousar a cabeça, sem uma terra para pisar e sentir que é sua.

Até hoje isso pode ser observado na luta de tantos povos e tantos grupos humanos por uma terra, um lugar para cultivar, um teto para cobrir-lhe a cabeça.  O ser humano não é nem pode ser a-tópico; ao contrário, necessita de um espaço no mundo a fim de sentir-se vivo, protegido, abrigado.

Isso se torna ainda mais grave e evidente quando esse ser vulnerável e desamparado que luta contra a atopia é uma criança.  E uma criança de quatro anos de idade. Nesta idade, a criança ainda é totalmente dependente dos pais, da casa, do lar, do espaço familiar. Estar longe de tudo isso, da proteção dos pais e da família, do espaço da casa e da pátria, vagando sozinho por um lugar hostil, com sede e com fome... O que pode haver de mais cruel e pungente do que o estado dessa criança, desse menino cujos primeiros contatos com o mundo e a vida são tão carregados de perigo e sofrimento?

Impressiona-me sua foto olhando com medo e desconfiança aqueles que tentam ajudá-lo.  Impressiona-me o fato de que há menos de um ano a imprensa e as redes sociais já nos chocaram com a foto de outro menino com idade equivalente morto afogado nas praias da Síria. E com a foto de uma menina síria, da mesma idade, diante de uma câmera fotográfica com pavor nos olhos, pensando tratar-se de uma arma.

A violência terrível que assola a nossa época é chocante. Porém, mais ainda  quando atinge crianças, porque são pequenos, indefesos, vulneráveis e tudo pode atingi-los mortalmente. Porque não podem defender-se nem tomar providências para proteger-se de todas as ameaças que pesam sobre suas vidas.

Não à toa o Deus de Israel identificou-se desde o princípio como porta-voz do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro.  Ou seja, daquelas categorias de pessoas mais desprotegidas e vulneráveis, que não têm quem fale por elas. O próprio Deus toma a defesa delas e é fiador de sua dignidade.  Nossa única esperança é que esse mesmo Deus seja a garantia da vida e do futuro do pequeno Arwan. E de todas as crianças que, como ele, vagam sem rumo por esse mundo à procura de um lugar onde repousar sua corporeidade infantil e frágil, cheia de insegurança e medo diante do mundo que ameaça engolir a infância  delas.

Uma humanidade que não sabe garantir o futuro de suas crianças está no caminho da perdição sem remédio.  Ainda bem que pode sempre voltar-se para o Deus da vida e implorar socorro.  Ele não deixará que Marwan, Aylan e a menina síria vaguem para sempre por um deserto inclemente sem encontrar a fonte de água viva que poderá lhes aplacar a sede.

   Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)    
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