Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Ele tem quatro anos
e leva uma sacola na mão. O olhar assustado percorre as areias do
deserto e os funcionários da ONU que o observam e tentam ajudá-lo. É
sírio e chama-se Marwan. Vagava no deserto sozinho quando foi encontrado
depois de haver se perdido de seus pais durante a fuga da violência que dizima
seu país. Andava a esmo, errante pelo deserto hostil, sem saber para
onde.
Desde os tempos do Antigo
Testamento o deserto é uma imagem poderosamente evocativa para o povo de
Deus. Se algo é concordância na exegese bíblica, é que o deserto é
fundamental na auto compreensão que o povo de Deus tem sobre sua identidade.
Povo liberto pela mão
poderosa de Deus, o povo de Israel teve que vagar longamente pelo deserto antes
de finalmente chegar à terra prometida. Ali os hebreus libertos viveram a
dúvida, a vulnerabilidade e a insegurança que os fez muitas vezes duvidar e
desejar voltar à escravidão do Egito, onde pelo menos havia comida.
Estar no deserto é sentido
como estar próximo da morte, longe da terra dos vivos, que depois se tornará a
Terra Santa. Assim se entende a pergunta que faz o povo indignado a Moisés
em Ex 14,11-12: Não havia sepulcros no Egito, para nos tirar de lá, para
que morramos neste deserto? Por que nos fizeste isto, fazendo-nos sair do
Egito?
Não é esta a palavra que
te falamos no Egito, dizendo: Deixa-nos, que sirvamos aos egípcios? Pois que
melhor nos fora servir aos egípcios, do que morrermos no deserto.
Beijo quente da fome e da
sede, o deserto era visto desde muito cedo pelos israelitas como um lugar
difícil e perigoso, vazio de pessoas, cheio de solidão. Lugar de animais
perigosos e demônios que tentam. Na Bíblia, o deserto é muitas vezes
sinônimo de desolação, e esta é fruto da destruição, sentida como abandono ou
castigo de Deus. O deserto, sobretudo no Antigo Testamento, é o contrário
do paraíso; é o caos originário, no seio do qual nada se distingue e nada se
pode perceber com clareza.
O deserto é igualmente o
lugar da errância, do nomadismo. Enquanto o povo andava pelo deserto, sem
vislumbrar a terra da promessa, sofria com o desejo da estabilidade e da
sedentarização que não vinham. E assim como o ser humano rejeita e
detesta o caos, que o atira na anomia e na anarquia para as quais não foi
feito, igualmente odeia e rejeita a errância e o vagar sem descanso e sem
lugar para repousar a cabeça, sem uma terra para pisar e sentir que é sua.
Até hoje isso pode ser
observado na luta de tantos povos e tantos grupos humanos por uma terra, um
lugar para cultivar, um teto para cobrir-lhe a cabeça. O ser humano não é
nem pode ser a-tópico; ao contrário, necessita de um espaço no mundo a fim de
sentir-se vivo, protegido, abrigado.
Isso se torna ainda mais
grave e evidente quando esse ser vulnerável e desamparado que luta contra a
atopia é uma criança. E uma criança de quatro anos de idade. Nesta idade,
a criança ainda é totalmente dependente dos pais, da casa, do lar, do espaço
familiar. Estar longe de tudo isso, da proteção dos pais e da família, do
espaço da casa e da pátria, vagando sozinho por um lugar hostil, com sede e com
fome... O que pode haver de mais cruel e pungente do que o estado dessa
criança, desse menino cujos primeiros contatos com o mundo e a vida são tão
carregados de perigo e sofrimento?
Impressiona-me sua foto
olhando com medo e desconfiança aqueles que tentam ajudá-lo.
Impressiona-me o fato de que há menos de um ano a imprensa e as redes sociais
já nos chocaram com a foto de outro menino com idade equivalente morto afogado
nas praias da Síria. E com a foto de uma menina síria, da mesma idade, diante
de uma câmera fotográfica com pavor nos olhos, pensando tratar-se de uma arma.
A violência terrível que
assola a nossa época é chocante. Porém, mais ainda quando atinge
crianças, porque são pequenos, indefesos, vulneráveis e tudo pode atingi-los
mortalmente. Porque não podem defender-se nem tomar providências para
proteger-se de todas as ameaças que pesam sobre suas vidas.
Não à toa o Deus de Israel
identificou-se desde o princípio como porta-voz do pobre, da viúva, do órfão e
do estrangeiro. Ou seja, daquelas categorias de pessoas mais
desprotegidas e vulneráveis, que não têm quem fale por elas. O próprio Deus
toma a defesa delas e é fiador de sua dignidade. Nossa única esperança é
que esse mesmo Deus seja a garantia da vida e do futuro do pequeno Arwan. E de
todas as crianças que, como ele, vagam sem rumo por esse mundo à procura de um
lugar onde repousar sua corporeidade infantil e frágil, cheia de insegurança e
medo diante do mundo que ameaça engolir a infância delas.
Uma humanidade que não
sabe garantir o futuro de suas crianças está no caminho da perdição sem
remédio. Ainda bem que pode sempre voltar-se para o Deus da vida e
implorar socorro. Ele não deixará que Marwan, Aylan e a menina síria
vaguem para sempre por um deserto inclemente sem encontrar a fonte de água viva
que poderá lhes aplacar a sede.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia e literatura -
Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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