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sexta-feira, 23 de junho de 2017

O PORQUÊ DA VIOLÊNCIA NO SER HUMANO E NA SOCIEDADE


 Por Leonardo Boff


 Vivemos no nível nacional e mundial situações de violência que desafiam nosso entendimento. Não apenas de seres humanos contra outros seres humanos, especialmente no Norte da África, no Sudão, no Oriente Médio e entre nós mas também contra a natureza e a Mãe Terra. O Papa Francisco em sua encíclica ecológica Sobre o Cuidado da Casa Comum escreveu acertadamente:”Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos”(n.53). Não sem razão que está se impondo a ideia de que inauguramos uma nova era geológica, o antropoceno segundo o qual o grande meteoro rasante ameaçador da vida no planeta é o próprio ser humano. Ele se fez o Satã da Terra quando foi chamado a ser o anjo bom e cuidador do Jardim do Éden.
A existência da violência, não raro sob forma de aterradora crueldade, representa um desafio para o entendimento. Teólogos, filósofos, cientistas e sábios não encontraram até hoje uma resposta convincente.
Quero apresentar, sumariamente, a proposta de notável pensador francês que viveu muitos anos nos EUA e que faleceu em 2015: René Girard (1923-2015). Apreciava meus textos e a Teologia da Libertação em geral a ponto de ele mesmo ter organizado em Piracicaba-SP um encontro (25-29 de junho de 1990) com vários teólogos e teólogas, pois via nos propósitos deste tipo de teologia a possibilidade da superação da lógica da violência.
De sua vasta obra destaco duas principais: “O sagrado e a violência” (Rio 1990) e “Coisas escondidas desde o princípio do mundo”(Rio 2005). Qual é a singularidade de Girard? Ele parte da tradição filosófico-psicanalítica que afirma ser o desejo uma das forças estruturantes do ser humano. Somos seres de desejo. Este não conhece limites e deseja a totalidade dos objetos. Por ser o desejo indeterminado, o ser humano não sabe como desejar. Aprende a desejar, imitando o desejo dos outros (“desejo mimético” na linguagem de Girard).
Isso se vê claro na criança. Não obstante os muitos brinquedos que possui, o que mais ela quer, é o brinquedo da outra criança. E aí surge a rivalidade entre elas. Uma quer o brinquedo só para si, excluindo a outra. Se outras crianças entrarem nesse mimetismo, origina-se um conflito de todos contra todos.
Esse mecanismo, afirma Girard, é paradigmático para toda a sociedade. Supera-se a situação de rivalidade-exclusão, quando todos se unem contra um, fazendo-o bode expiatório. Ele é feito culpado de querer só para si o objeto. Ao se unirem contra ele, esquecem a violência entre eles e convivem com um mínimo de paz.
Com efeito, as sociedades vivem criando bodes expiatórios. Culpados são sempre os outros: o Estado, o PT, os políticos, a polícia, os corruptos, os pobres e por ai vai. Importa não esquecer que o bode expiatório apenas oculta a violência social, pois todos continuam rivalizando entre si. Por isso, a sociedade goza de um equilíbrio frágil. De tempos em tempos, com ou sem sem bode expiatório explícito, a violência se manifesta especialmente naqueles que se sentem prejudicados e buscam compensações.
Bem o expressou Rubem Fonseca em seu livro “O Cobrador”. Um jovem de classe média empobrecida, por força das circunstâncias, pratica atos ilícitos. Sente-se roubado pela sociedade dominante e confessa: “Estão me devendo colégio…sanduíche de mortadela no botequim, sorvete, bola de futebol…estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei… sei que se todo fodido fiezesse como eu o mundo seria melhor e mais justo”.
Aqui busca-se uma solução individual para um problema social. Na medida em que permanece individual não causa grande problema. Pelo contrário, os causadores principais da violência estrutural  são as classes dominantes que acumulam para si à custa do empobrecimento dos outros. Quanto mais duramente se aplicam as leis contra os empobrecidos mais seguras se sentem. Destarte, conseguem ocultar o fato de serem  elas as principais causadoras de uma situação permanente de violência que o empobrecimento implica.
Mais ainda, vivemos num tipo de sociedade cujo eixo estruturador é a magnificação do consumo individualista. A publicidade enfatiza que alguém é mais alguém quando consome um produto exclusivo que os outros não têm. Suscita-se um desejo mimético de se apossar do bem do outro.  Esta lógica perpetua a violência.
Mas o desejo não é só concorrencial, diz Girard. Ele pode ser cooperativo. Todos se unem para compartilhar do mesmo objeto. De concorrentes se fazem aliados. Tal propósito gera uma sociedade mais cooperativa que competitiva e uma democracia participativa. Aqui Girard via o sentido político da Teologia da Libertação porque propõe uma educação que não imita o oppressor, mas se faz livre e ensina a não criar bodes expiatórios mas a assumir a tarefa de construir uma sociedade mais igualitária e  inclusiva. Então sim haverá mais paz que violência.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e autor de “A violência da sociedade capitalista e do mercado mundial” e articulista do JB on line


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