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quarta-feira, 12 de junho de 2019

O PAPA FRANCISCO E A LUTA PELA PALAVRA (1)




Por Eduardo Hoornaert

De que modo o Papa Francisco faz uso da palavra? Ela indica, designa, afirma/nega, ou, pelo contrário, não designa nem indica, mas questiona, suscita dúvidas? É uma palavra ‘fácil’ ou ‘difícil’? Mal se avalia a importância dessa questão. O que acontece nestes dias entre o Papa Francisco e alguns dos Cardeais ‘dissidentes’ configura uma luta que, afinal, ultrapassa as contingências do papado católico e mesmo do cristianismo, para alcançar a questão global do tipo de convivência que estamos construindo nas sociedades em que vivemos.

A palavra fácil.

Os primeiros anos do Papa Francisco foram relativamente tranquilos. Ele pronunciava palavras que agradavam a muitos, dentro de fora da igreja. Até brincava com palavras. Virou um papa ‘pop’. Mas com os dois Sínodos sobre a Família (2014 e 2015), a maré começou a virar e se ouviu dizer que ele é um Papa ‘de palavras difíceis’. O mesmo aconteceu com o texto Amoris Laetitia de 2016. Palavras inusitadas para um papa, que suscitaram dúvidas e inseguranças.

A frente anti-Francisco, que se revela com crescente desenvoltura, costuma usar palavras designativas, como demonstro em seguida por meio de alguns exemplos de declarações recentes, pronunciadas por cardeais ou outras autoridades políticas, e que realço aqui usando letras em negrito.

- Num encontro na Plaza del Duomo em Milão, no dia 20 de maio pp., Matteo Salvini, que acaba de ganhar as eleições presidenciais na Itália com mais de 34 % dos votos, discordou abertamente da palavra do Papa, que disse, num encontro no dia 18 do mesmo mês com jornalistas: O Mediterrâneo está se tornando um cemitério. Na presença de Marine Le Pen da França (a extrema direita que acaba de crescer na França nas eleições de 26/05), e Geert Wilders da Holanda, Salvini beijou um rosário e contestou diretamente o Papa declarando: ‘À Sua Santidade eu digo que a política deste governo está eliminando os mortos no Mediterrâneo com eficiência e caridade cristã’. Numa outra oportunidade, ele mostrou uma camiseta na qual figuram as palavras: ‘meu papa é Bento (XVI)’.

- O Sr. Steve Bannon, ex-assessor de Trump nas eleições de 2017, dá mostras de querer dirigir seus holofotes para a Itália de Salvini Tem um plano ambicioso na cabeça: fundar uma ‘Escola de novos gladiadores em defesa do Ocidente’, para formar líderes católicos nacionalistas e populistas, intitulado ‘Instituto Dignitatis Humanae’. Para tanto, ele tentou estabelecer tal Escola num antigo Mosteiro de cartuxos (fundado em 1204) nas montanhas de Trisulti, a uma hora de carro de Roma. A assistência eclesiástica seria dado pelo Cardeal americano Raymond Burke. Pelo momento, ele está com problemas com o fisco, mas não parece que ele pensa em abdicar do plano. De qualquer modo, em relação Papa Francisco ele é direto: ‘O papa é o inimigo’.

- O Cardeal Burke, que acabei de mencionar, pronunciou, no dia 18 de maio pp., uma palestra na Universidade Angelicum de Roma, que foi transmitida pela TV CNS (Community Network Services), um canal abrangência mundial, em que voltou ao tema da imigração. Afirmou que essa imigração deve ser entendida dentro do quadro geral de um movimento que ‘constitui uma invasão muçulmana no mundo ocidental’. E explica: ‘O Islãse vê destinado a governar o mundo’. ‘Isso ameaça a cultura verdadeira que consiste no respeito pela vida, respeito pela moral sexual e culto devido a Deus’. Por isso, ‘limitar a imigração massiva muçulmana é um exercício responsável de patriotismo’. E, na mesma linha: ‘desobedecer ao papa é um dever, caso ele exercer seu poder de modo pecaminoso’.

- O Cardeal alemão Gerhard Müller, ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, entra no coro com palavras não menos contundentes: ‘as palavras do Papa não sãopalavras de um estadista. O papa não resolve nada, não decide nada’. Nisso, ele comenta a famosa frase do Papa Francisco quem sou eu para impedir a um homossexual de se aproximar de Deus?, para insinuar que o papa seria adepto de permissividade sexual. Ora, insiste Müller, quem sente atração por uma pessoa do mesmo sexo tem de guardar a castidade. Senão, afirma ele, ele adere, sabendo ou não, ao movimento gay, que é de caráter totalitário e intenta desconstruir a família. O discurso do Cardeal Müller estabelece, pois, uma ligação entre permissividade homossexual e totalitarismo.

Aqui, o Cardeal tenta arrastar o Papa para a arena de uma contenda com a opinião pública que, sempre mais, considera o casamento gay como algo normal. Segundo investigações da Organização das Nações Unidas (ONU), os menores de quarenta anos (os chamados ‘millenians’) consideram a orientação sexual como um dos traços variáveis do ser humano, sem maiores considerações de ordem moral. Assim como a cor da pele, a nacionalidade, etc.

Os cardeais que citei acima deixam entender que se sentem irritados com determinados gestos do Papa Francisco. Eles o consideram um ‘populista’, que manda parar o papamóvel para abraçar um doente em seu carrinho, visita padres casados, oferece carona a refugiados em Roma, conversa com ortodoxos, judeus, islamitas, e até ateus, beija a face de um cego, lava os pés de criminosos presos, figura em fotos ao lado de camponeses peruanos e indígenas colombianos. Decididamente, Francisco nem sempre demonstra a moderação que convém ao cargo. Parece se deixar levar por ‘extremos’. Não se revela um líder sensato, de discursos razoáveis e ponderados.

Coisa mais insidiosa aparece em abril 2019. O Papa resignatário Bento XVI estaria segurando a bandeira de uma oposição não confessa ao Papa Francisco. O estopim foi um texto, intitulado ‘Reflexões’, que Bento XVI mandou entregar, em final de fevereiro de 2019, ao Papa Francisco e ao Secretário do Estado Cardeal Pietro Parolin. Nesse texto, Bento XVI atribui a pedofilia no clero à ‘frouxidão doutrinal e a atitudes laxistas frente a homossexuais’. Como nem o Papa, nem o Cardeal Secretário reagiram diante de tais ‘Reflexões’, elas foram entregues aos grandes meios de comunicação no mês de abril. Como escrevi acima, Salvini aproveitou da confusão para exibir uma camiseta com os dizeres: ‘Meu papa é Bento’.

Por que tanto redemoinho? Em que sentido a palavra do Papa Francisco incomoda?

A palavra difícil.

O Papa Francisco incomoda por pronunciar palavras difíceis. Cito aqui algumas.

1. Quem sou eu para julgar?

A frase foi pronunciada no avião de volta da Jornada da Juventude no Rio de Janeiro em 2013, poucos meses depois da eleição. Continua sendo, até hoje, a mais famosa frase do Papa Francisco: Quem sou eu para impedir um homossexual de se aproximar de Deus?Uma frase que implica que seus ouvintes tenham a capacidade de fazer uma leitura contextualizada dos trechos do Antigo Testamento que tratam da assim chamada ‘sodomia’, como Gn 19, 15 (Ihwh faz cair uma chuva de súlfur sobre Sodoma); Lv 18, 22 e 20, 13 (que contém uma condenação formal da ‘sodomia’) e 2Sm 1, 26 (onde se comenta o amor homossexual entre Davi e Jônatas). O discurso do papa pressupõe, pois, gente disposta a refletir, estudar, se aprofundar.

2. Não se deve dar preferência a espaços de poder frente aos tempos, por vezes largos, dos processos. Nosso poder consiste em colocar em marcha processos, mais que ocupar espaços.

Outra frase nada fácil, pois ela sugere a capacidade de se operar uma mudança radical na pastoral da igreja católica, tal qual foi concebida e realizada desde a Idade Média. Uma pastoral que consiste basicamente em ‘ocupar espaços’, tanto territoriais (a paróquia) quanto institucionais (capelanias, assistências eclesiásticas, diretorias, assessorias), tanto imaginários quanto políticos. Vejamos em detalhes como isso foi concebido na Idade Média e vigora até hoje:

- O controle dos tempos da vida. Do berço à morte, o homem vive sob o controle da religião católica. A hora, o dia, a semana, o ano, a vida, tudo é ‘eclesiástico’.

- O controle do espaço físico. Não chega a ser total, pois sempre existiram grupos que conseguiam escapar e viver em espaços próprios, como, na Idade Média, os boêmios, os goliardos (sacerdotes vagantes) e, de certa forma, os devotos nas confrarias, e hoje muitos leigos. Esses espaços livres, contudo, nunca rivalizaram nem de longe com a rede de instituições controladas pelo clero: cristandade, diocese, paróquia, santuários.

- Um terceiro espaço ocupado pelo estado eclesiástico é o do ensino. Na Idade Média, a única formação intelectual era eclesiástica. Nas escolas episcopais e monásticas não se estudavam ciências humanas como antropologia, sociologia, psicologia, história, muito menos ciências positivas como física, química, biologia etc. Mas, em contrapartida, a teologia nas Universidades era extremamente racional e fomentava o espírito científico, o que criou um espaço para o posterior cultivo das ciências modernas. Mas, de qualquer modo, o clero manteve ao longo de muitos séculos o monopólio da escrita. Ser letrado significou, antes da Revolução Francesa, ser clérigo.

- Um quarto espaço controlado pelo estado eclesiástico é o da comunicação de massa. Na Idade Média, quem diz mídia, diz igreja. A Igreja Catedral domina a cidade, a Igreja Paroquial domina a aldeia. Catedral episcopal e igreja paroquial constituem os instrumentos midiáticos mais ostensivos da sociedade. A população mora em torno da igreja. Em certos casos, a catedral é tão espaçosa que a população inteira nela cabe (como em Paris). Todos contemplam o bispo e sua corte litúrgica, ficam impressionados com tanta exibição de poder e majestade. É através desses instrumentos midiáticos que o estado eclesiástico controla a moral dos habitantes, concretamente através da catequese, do sermão e da confissão auricular. Chega a controlar laços de parentesco, valorizando o padrinho de batismo diante do pai biológico.

- Um quinto setor público ocupado pelo estado eclesiástico é o da saúde pública. Sucesso garantido: hospícios monásticos nos inícios e em seguida hospitais nas cidades. Nesse setor operaram, com notável competência, as ordens femininas. Elas compunham a imagem pública da sociedade, não só nas cidades maiores, mas também nas aldeias, principalmente nas terras controladas por ordens monásticas.

- Finalmente, o clero exerceu, durante séculos, controle sobre a morte das pessoas. A onipresença do espectro do inferno, sendo que só o clero tem condições de salvar as almas do inferno, abrir as portas do céu, ou pelo menos do purgatório. O clero providencia o enterro no cemitério em torno da igreja paroquial, sendo que a freguesia toda sabe que um dia vai ‘repousar’ em torno dela.

Diante de tão impressionante painel histórico, o Papa Francisco tem a coragem para dizer: Não se deve dar preferência a espaços de poder. Trata-se de incentivar processos, dinamizar a ação, colocar a igreja em marchaNosso poder consiste em colocar em marcha processos, mais que ocupar espaços. Para avançar na construção de um povo, o tempo é superior ao espaço.

Abandonar a ideia da centralidade da igreja na construção da sociedade, dar a César o que é de César, não querer ocupar todos os espaços, colocar em marcha processos? Militar na construção da justiça e da misericórdia, do encontro e do diálogo? Eis um programa para valer. Nisso, todos são convocados: crentes e descrentes, católicos e ateus, cristãos e islamitas, comunistas e liberais.

3. A igreja em saída.

Abandonar a pastoral sedentária, andar pelos caminhos do mundo, deixar de lado a pastoral sedentária. Francisco não estará sugerindo que se abandone uma pastoral quase unicamente centrada na ‘administração (paroquial) dos sacramentos, que ela seja gradativamente abandonada, em benefício de uma pastoral em saída, missionária? Ora, a pastoral sacramental tem o peso de séculos. O trabalho sacramental na paróquia constitui a própria razão de ser dos vigários. Sendo habilitados a administrar sacramentos e tendo em mãos os meios de salvação dos paroquianos, os sacerdotes detêm um poder considerável. Pois, embora a teologia ensine que os sacramentos são sinais do amor de Deus, eles são vividos, durante séculos, num enquadramento de intimidação, de medo do inferno, da rejeição social, da discriminação. Durante séculos, ao guardar o monopólio dos sacramentos, considerados indispensáveis à salvação, o estado eclesiástico suscita na população o terror diante das penas do inferno, como comprovam sermonários antigos, revelados pela pesquisa histórica. Os pregadores empurram os recalcitrantes aos sacramentos.

Mas, com o tempo, o medo do inferno vai cedendo. Pessoas mais formadas se declaram independentes e abrem um novo espaço. Antes da Revolução Francesa, por exemplo, mais de 90% dos franceses iam à missa todos os domingos. Vinte anos depois, o número era de 20%. Antes da Revolução, os que não recebiam os sacramentos eram fichados na polícia e tratados como suspeitos. Tudo mudou em poucos anos, o que mostra que estava em marcha um processo amadurecido.

Ao falar em igreja em saída, o Papa constata implicitamente que hoje já não se frequentam os sacramentos como antes. É de se lamentar, sem dúvida, pois – afinal - os sacramentos são gestos de Deus bondoso e misericordioso. Mas eles foram manipulados pelo estado eclesiástico durante séculos, o que faz compreender a atual reação contra sentimentos de dependência e obediência, a favor da liberdade.

O Papa sabe que, na mente de grande parte do clero, a diminuição da prática sacramental é interpretada como uma decadência. Alguns clérigos perdem a necessária motivação para continuar em trabalhos paroquiais. Para outros, os sacramentos continuam sendo o caminho de seu relacionamento com o povo, a motivação principal de seu trabalho. Muitos ainda entendem que o sacerdote está na paróquia para celebrar os sacramentos. Para eles, a perda de frequência aos sacramentos, por parte dos leigos, chega a ser algo dramático. Mesmo assim, Papa Francisco bate duro: paróquia não é cartório.

4. Não podemos continuar insistindo só em questões referentes ao aborto, ao casamento homossexual e ao uso de contraceptivos

Uma das artimanhas de um sistema político consiste na articulação do ‘discurso de desvio’. Questões laterais são insistentemente abordadas, enquanto se deixa a passagem livre para operações políticas nada favoráveis à maioria da população. Sem desmerecer a importância das discussões sobre aborto, casamento homossexual, uso de contraceptivos, imigração, há de se dizer que elas podem ocultar o que está realmente acontecendo nas atuais sociedades: a transferência da ‘riqueza das nações’ para as contas bancárias de poucos indivíduos extremamente ricos. Enquanto a TV enche os noticiários com assuntos de moral, a depredação da riqueza de grande maioria da população, em benefício de poucos, prossegue seu livre curso. A crescente desigualdade social não aparece no discurso hegemônico. Não se fala em controle fiscal das riquezas de grandes consórcios financeiros, não se fala em imposto progressivo. Fala-se em ‘imposto fixo’ (flat tax), igual para todos, com isenções que não aparecem na tela.

O Papa, embora não fuja de temas como migração, pedofilia, etc., detecta um movimento de desvio no modo em que esses temas costumam ser abordados nos noticiários. No tocante à pedofilia no clero, ele tem a lucidez e a coragem de afirmar que não basta elaborar regulamentos punitivos, mas que precisa encarar o encobrimento de crimes clericais, uma prática generalizada, como comprovam os noticiários. Esse encobrimento não é algo casual, expressa o funcionamento real do estado eclesiástico. Aqui, Francisco encara, com certo temor, um sistema que se formou ao longo de séculos, o paradigma do ‘bem da igreja’, um poder que praticamente se identifica com a igreja. Nos documentos oficiais de autoridades eclesiásticas, pode-se substituir o termo ‘igreja’ por ‘estado eclesiástico’. O sentido permanece o mesmo. Alguns milhares de pessoas representam 1,3 bilhão de pessoas, ou seja, aos católicos espalhados pelo mundo. Ao tomar resolutamente partido por essa maioria, Francisco não tem por onde fugir: ele tem de encarar o sistema eclesiástico. Ele tem de saber resistir à maioria do clero, ao stablishment da Cúria Romana.

Com passos calculados, ele afirma, no recente Decreto ‘Praedicate Evangelium’, editado em maio 2019, que a Cúria Romana não é um órgão a ‘auxiliar o papa na administração da igreja’, mas um órgão missionário, a serviço da igreja em saída. Não é pouca coisa, pois com isso o Papa enfrenta regulamentos que remontam ao ano 1588, logo depois do Concílio de Trento, quando se estruturou a Cúria como organizadora do poder central católico frente ao luteranismo e outros movimentos centrífugas. Regulamentos não revogados na reforma da Cúria empreendida em 1988 pelo Papa João Paulo II (‘Pastor Bonus’). No momento em que Francisco declara que a Cúria Romana deve estar ‘ a serviço do colégio episcopal’ no tocante à evangelização e à missão, ele provoca uma turbulência de resultados imprevisíveis.

5. Lutero não se equivocou, o Islã pode ser considerado uma ‘verdadeira religião’, o divorciado pode participar da eucaristia, o celibato pode ser questionado, a mulher merece um lugar mais importante na igreja, há aborto e aborto, a união entre homossexuais não é, em si, pecaminosa.

Quem sou eu para julgar o posicionamento de Lutero? Quem sou eu para me pronunciar sobre o Islã? Quem sou eu para mexer com a vida de um divorciado? Quem sou eu para dizer à mulher quantos filhos ela deve ter e como ela tem de se comportar na igreja? Quem sou seu para dizer que o sacerdote deve ser necessariamente um celibatário? (Quem sou eu para dizer que o candomblé não é uma ‘verdadeira religião’?).

Palavras diametralmente opostas a um discurso hoje hegemônico nos grandes meios de comunicação e que o escritor americano Samuel Huntington resume na expressão ‘conflito de civilizações’. Enquanto assessores de líderes mundiais confidenciam que um enfrentamento global entre superpotências está na agenda e enquanto se realizam articulações em vista a uma ‘terceira guerra mundial’, o Papa sinaliza que é possível apagar os focos da terceira guerra mundial por meio de uma política de ‘encontro entre as civilizações’. Esse seu posicionamento é importante, pois sua voz é potencialmente ouvida por não menos de 1,3 bilhão de pessoas (os católicos), o que não é pouca coisa, para não contar os que não são católicos e ouvem o papa.

6. O Lawfare, além de colocar a democracia dos países em sério risco, é utilizado para minar os processos políticos emergentes e incentivar a violação sistemática dos direitos sociais.

Pronunciada numa Conferência de Imprensa no dia 4 de junho de 2019, essas palavras do Papa Francisco demonstram que ele está em ‘plena luta pela palavra’. O termo ‘lawfare’, que provém dos anos 1970, significa ‘guerra jurídica’. A lei vira arma política, manobras juridico-legais substituem força armada. Eis o modo pelo qual o poder do estado frequentemente opera em nossos dias, incentivado por vitórias políticas de líderes como Trump, Bolsonaro, Salvini e outros.

Nos primeiros anos de seu pontificado, era principalmente em suas conversas no avião, de volta de uma viagem internacional, que Francisco costumava se ‘soltar’. Como na famosa frase de 2013: quem sou eu para julgar? Ou em 2015, quando ele brincou: os católicos não são obrigados a se reproduzir como coelhos. Ou ainda em 2016, quando ele disse que o então candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trumpnão é cristão (ao prometer construir um muro na fronteira com o México).

Ultimamente, porém, nas coletivas de imprensa a bordo, o Papa está se mostrando mais comedido. A respostas, nestes dias, nada mais são que reiterações de coisas já ditas. Isso parece denotar um crescente clima de tensão nos altos escalões da hierarquia católica. De reconhecidamente espontâneo e aberto, incentivador de debates e disposto a resolver questões difíceis em público, Francisco se mostra ultimamente mais contido. A impressão e que ele se sente acuado. É nesse sentido que o jornalista italiano Marco Politi, um dos melhores conhecedores do Vaticano, escreve que o Papa, atualmente, fica ‘isolado da igreja’ (‘La Solitudine di Francesco’, Editori Laterra, 2019).

A luta pela palavra.

Eis a luta pela palavra em pleno curso. Uma luta que se situa sempre mais num cenário de Lawfare, Fake News, Twitters, enfim, no cenário político criado pelos novos recursos da comunicação eletrônica.

Um exemplo? Na preparação das recentes eleições europeias de 26 de maio de 2019, máquinas produtoras e divulgadoras de Fake News (outro nome de ‘palavra fácil’, ‘palavra que se pretende designativa’) despejaram nada menos de 3 bilhões de falsas notícias nas telas dos eleitores (daria 20 doses para cada eleitor). 30.000 máquinas espalharam durante semanas seu veneno tóxico pela Europa inteira. Ainda bem que os responsáveis por Facebook, Google, You Tube, Instagram e Twitter tenham esboçado uma reação e tenham eliminado 1, 6 bilhão de visualizações (trolls) na Espanha, 100 milhões na França, 900 milhões na Itália, 100 milhões na Alemanha, 200 milhões na Polônia, 100 milhões no Reino Unido. Esse pequeno exemplo mostra que no futuro teremos de ‘lutar por palavras’, a favor do uso correto delas e contra seu abuso para fins interesseiros. Todos e todas sabemos que a Internet veio para ficar e a humanidade terá de lidar com palavras veiculadas por ‘máquinas’ sempre mais potentes e penetrantes na intimidade das mentes.
A sociedade, até hoje, parece meio atordoado com esse novo modo de combate. Daí a conveniência de cavar mais fundo numa questão filosófica: como se transmite (ou não se transmite) a verdade por meio da palavra? A transmissão da palavra e sua relação com a verdade.

Para que você entenda melhor onde quero chegar, realcei acima alguns verbos usados pela ala da hierarquia que se opõe ao Papa, citando-os em negrito: ‘a imigraçãoconstitui uma invasão’; ‘ o Islã se vê destinado a governar o mundo’; ‘o Islã ameaça a cultura verdadeira’; ‘as palavras do Papa Francisco não são palavras de um estadista’; ‘o movimento gay é de caráter totalitário, intenta destruir a família’; ‘a pedofilia provém de frouxidão doutrinal e atitude laxa diante da homossexualidade’. Palavras de ordem designativa.

As expressões usadas pelo Papa Francisco são manifestamente de outra ordem. Como relatei acima, Francisco se expressa por meio de frases como: quem sou eu para julgar?,não se deve dar preferência, a igreja em saídanão podemos continuar insistindo.., Lutero pode estar certo, o divorciado pode participar da eucaristia, etc. Essas duas últimas frases não hão se ser interpretadas num sentido designativo, mas num sentido questionador: ‘será que Lutero está certo? Será que um divorciado pode pensar em participar da eucaristia?’. O mesmo se diga a respeito de conhecidas palavras de Francisco acerca do celibato, da participação de mulheres na igreja, da validade do Islã, da contestação por parte de Lutero, etc.

Enfim, o papa não designa. Ele questiona, exorta, convida, faz refletir. Mas não define.

Qual o sentido dessa diferenciação? O que os filósofos têm a dizer sobre esse tema? Entremos por uns instantes em território filosófico.

Desde Aristóteles, os filósofos, ao tratar da cognição, recomendam cuidados com enunciações designativas. Nem falo de Sócrates que é mais que claro nesse ponto. Ao constatar que nós, humanos, conhecemos por meio da informação, seja direta, por meio dos cinco sentidos, seja indireta, por falas, escritas ou imagens, esses filósofos nos advertem diante dos possíveis engodos causados por enunciações designativas. Aristóteles, em sua ‘Ética’, ao afirmar que a verdade consiste em detectar, numa mensagem recebida, ‘aquilo que é’ (id quod est), não deixa de alertar para o imperativo ético: nem sempre ‘aquilo que é’ me agrada, está em conformidade com meus interesses. Como me comporto diante do que ameaça se contrapor aos meus interesses? Pois não faltam, na vida da gente, imperativos não éticos, interesses pessoais, vantagens financeiras, lutas pelo poder, exercícios do poder, obediência a ordens dadas, compromissos de vida já assumidos, opção por modelos autoritários, ou simplesmente acomodação com situações existentes.

Discursos designativos podem, na realidade, servir para emitir uma ordem, expressar um desejo, uma exortação, um sentimento, uma intuição, uma imaginação, um sonho, um projeto, um cálculo, etc. Revestidos de objetividade, esses discursos não raramente ocultam intencionalidades no sentido de exercer um domínio sobre as mentes, firmar consensos, enfim, exercer poder sobre pessoas.

Como se perpetuam esses consensos ao longo da história? Principalmente pela família. Ela forma um elo de transmissão de mensagens de geração em geração. Como realçou Freud em suas penetrantes análises, discursos emitidos por instâncias que parecem merecer respeito, penetram fundo no seio da família e assim moldam nosso modo de pensar desde a infância. O fator família marca as vidas humanas. Em não poucos casos, as molda definitivamente. Assim afloram dentro de nós sentimentos aparentemente espontâneos, na realidade transmitidos de geração em geração e por isso mesmo pouco controláveis. Quem não estranha ver um passageiro de chinelos entrar num avião? Quem não estranha ver um negro segurar um diploma de estudos universitários ou dirigir um carro de luxo? Reações emocionais difíceis de serem analisadas, mais difíceis ainda de serem superadas. Freud, em seu tempo, apelou para a psicanálise, a fim de penetrar nesse universo. Muitos discursos, emitidos por poderes políticos e econômicos, combinam com o que aprendemos em casa quando éramos crianças. Os imperativos nada éticos que subjazem a esses discursos não são fáceis de serem detectados. Isso torna a vida humana complexa, a busca da liberdade e da autonomia uma verdadeira aventura. Muitos sucumbem no caminho e, de tanto ver televisão, se metem num labirinto tão intricado de informações contraditórias que não encontram mais a saída. Confusos e desorientados, desacostumados a refletir, acabam se rendendo. Não querem mais pensar. Quem contempla o atual cenário cognitivo, verifica com espanto quão facilmente as pessoas se deixam prender nas redes de discursos enganosos. Uma situação que só se explica pela forte adesão emocional a palavras designativas.

Assim compreendemos o fato aparentemente contraditório de pobre votar em rico ou em candidato que defende os interesses dos ricos. Isso tem desnorteado mais de um observador, mas Maquiavel explica o fato dizendo que as pessoas se rendem facilmente a enunciados que lhes parecem confiáveis. Voltaire ainda acrescenta: ‘mentez, mentez toujours: il en restera toujours quelque chose’ (mintam, mintam sempre: algo há de ficar). E Goebbels, ministro da informação do governo nazista, completa: ‘uma mentira repetida mil vezes se torna verdade’. Ninguém passa ileso pela prova da veracidade.

Assim compreendemos que, para um católico comum, fica bem mais fácil entender o Cardeal Burke, o Cardeal Brandmüller ou o Cardeal Müller, que captar o sentido das palavras do Papa Francisco. Os primeiros dispensam um pensamento mais aprofundado, seguem a rotina de palavras sempre repetidas, dizem as coisas de sempre. Nada mais fácil, para um cardeal, que repetir palavras ouvidas pelos católicos desde a infância. Resulta bem mais difícil compreender as palavras de um papa que diz que Lutero não se equivocou, o Islã pode ser uma ‘verdadeira religião’, o divorciado pode participar da eucaristia, o celibato pode ser questionado, a mulher merece um lugar mais importante na igreja, há aborto e aborto, a união entre homossexuais não é, em si, pecaminosa, etc.

Hoje temos, para nos apoiar, os filósofos linguistas, os que, ao longo do século XX, provocaram a ‘reviravolta linguística’, em muitos casos como resposta ao uso da palavra por parte de ditadores europeus, tanto na Rússia como na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. Hoje temos Bakhtin, Ricoeur, Bourdieu, Wittgenstein, Zizek, Noam Chomsky.

Lembro que, em 1945, logo depois do desfecho da Segunda Guerra Mundial, Ludwig Wittgenstein reuniu nada menos de 693 aforismos para nos ajudar a superar a ingenuidade com que discursos designativos costumam ser acolhidos na sociedade. Posteriormente publicados sob o título ‘Investigações filosóficas’ (Vozes, Petrópolis, 2005, 4a ed.; ou ainda: Nova Cultural, São Paulo, 1994. Veja também seu ‘Sobre la Certeza’, Gedisa, Barcelona, 1995), esses aforismos permanecem um remédio eficiente contra a sedução da palavra.

Esses filósofos linguistas, de diversas matizes, nos propõem o exercício constante de limpeza da mente. Há de se tomar um antídoto contra ‘Lawfare’, ‘Fake News’, etc. Ninguém se engane, essas novas técnicas de comunicação vieram para ficar e se desenvolver sempre mais, já que repousam sobre um saber em pleno desenvolvimento, que ainda não revelou todas as suas potencialidades. Vivemos em sociedades cada vez mais ‘informáticas’, onde não só enormes conglomerados informativos derramam sobre nós diariamente um fluxo ininterrupto de informações, mas onde o Twitter também permite que cada um(a) de nós emita, por sua vez, informações e afirmações, a seu bel prazer.

Um exercício constante, uma meditação, momentos de reflexão diária, um exercício contínuo e diário de domínio inteligente sobre o pensamento, tão necessário – ou até mais – que o exercício físico que fazemos diariamente para ficar em forma.

Num texto próximo, sob o mesmo título, me proponho tratar da luta pela palavra nos inícios da história do cristianismo. Isso significa que o Papa Francisco está inserido numa longa história de luta pela palavra evangélica.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

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