O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Palavra de Pedro: A TRINDADE

 


Dom Pedro Casaldáliga

 

        Crer no Deus bíblico, a partir de Jesus, é necessariamente crer na Santíssima Trindade. O Deus de Jesus, o Deus cristão, é o Pai e o Filho e o Espírito, a Santíssima Trindade.1

        Em Jesus está pessoalmente o Filho do Pai eterno. Ele é historicamente o Filho unigênito de Deus. E no mistério de Jesus vive e age historicamente o Espírito eterno do Pai e do Filho.

        A unidade comunitária das três pessoas divinas conflui, se expressa, ama e salva na tensa unidade histórica dessas duas naturezas que constituem o único Jesus, Cristo Senhor. O Deus de Jesus é, vive e nos revela, nem é solitário nem é distante; é tanto transcendente como imanente. É tanto de fé cristã “a história da Trindade como a Trindade na história”.2 É o Deus-trinamente-consigo-mesmo, que se faz o Deus-conosco. Ele é Uma comunidade e é a Eternidade-História.

        A Santíssima Trindade é a melhor comunidade, proclamam nossas Comunidades Eclesiais de Base. É fonte, exigência, e término de toda verdadeira comunidade. A Igreja de Jesus ou é trinitária ou não é cristã. A espiritualidade cristã é necessariamente trinitária. A espiritualidade cristã na Igreja e no mundo tem a vocação de tornar presente o mistério da Trindade dentro dos vaivéns e esperanças da história humana.

        A Trindade é, em si, o princípio e o fim do Reino. O Reino, na terra e no céu, é a doação efusiva, processual, histórica e trans-histórica da Trindade na plenificação de vida de seus filhos

e filhas e da integridade e beleza de sua criação.

        A glória da Trindade é a realização do Reino.

        A trinitariedade é nota essencial de toda verdadeira evangelização, da autêntica Igreja de Jesus e da espiritualidade que quer ser cristã.

        A comunitariedade e a historicidade dessa Trindade que o Evangelho nos revelou, devem ser anunciadas pela evangelização, celebradas e “institucionalizadas” na Igreja, e vivenciadas – em fé, esperança e caridade – por todas as pessoas cristãs e pela comunidade eclesial inteira.

        As atribuições pessoais do Pai, do Filho e do Espírito devem ser também explicitamente vivenciadas, como tais, numa verdadeira espiritualidade cristã e com características próprias na Espiritualidade da Libertação.

 

Como o Pai,

        que é fonte-mãe da vida, criatividade inesgotável, acolhida total, origem e regresso de tudo quanto existe...,

        os cristãos e cristãs, na América Latina, devemos desenvolver dentro de nós e em todos os ambientes de nossa atuação:

        - a paixão pela vida e sua promoção,

        - a ecologia integral,

        - a atitude de compreensão, de acolhida, de paternidade-maternidade tanto biológica como espiritual, tanto política como artística,

        - a memória de nossas origens e o sentido da vida e da história.

 

Como o Filho,

        que é ser humano e ser divino,

        o Filho de Deus e um filho de mulher,

        a Palavra e o Serviço,

        o Eleito e o sem-rosto,

        o pobre do presépio e o proclamador das bem-aventuranças,

        o aniquilado e o Nome acima de todo nome,

        a compaixão e a ira de Deus,

        Morte e Ressurreição...,

 

        nós devemos integrar harmonicamente, superando toda dicotomia:

        - a filiação divina e a fraternidade humana universal,

        - a contemplação e a militância, a gratuidade e a práxis, o anúncio e a construção do Reino,

        - a dignidade dos filhos/filhas de Deus e o “opróbrio de Cristo”,

        - a infância espiritual e a “perfeita alegria”,

        - a loucura da cruz e a segurança de saber em quem confiamos,

        - a misericórdia e a profecia, a paz e a revolução,

        - o fracasso e a vitória da Páscoa.

 

Como o Espírito,

        que é o Amor interpessoal do Pai e do Filho e “o Amor que está em todo amor”;

        - a interioridade insondável do próprio Deus e de todos os que o contemplam, e ao mesmo tempo a dinamização de tudo o que é criado, vive, cresce, se transforma;

        - o “Pai dos pobres”, o Consolador dos aflitos, o go'el dos marginalizados, o incitador da liberdade e de toda libertação e o Advogado da justiça do Reino;

        - o Óleo da Missão, o Júbilo da Páscoa e o Vento de Pentecostes;

        - o testemunho na boca e no sangue dos mártires; o que levanta, reveste e congrega os ossos ressequidos e as utopias sufocadas...

 

nós,

        - em contemplação militante e em libertação evangélica,

        - em conversão permanente e em profecia diária,

        - em ternura, em criatividade e em parresia,

        - levados por esse Espírito que já é para sempre o Espírito do Ressuscitado,

 

assumiremos:

        - todas as causas da Verdade, da Justiça e da Paz,

        - os direitos humanos pessoais e o direito dos povos à alteridade, à autonomia e à igualdade,

        - os processos da sociedade alternativa e as fecundas tensões de uma Igreja que sempre há de ser impelida a se converter,4

        - a herança de nossos mártires,

        - o diário amanhecer da utopia, acima de todos os ocasos, e o Final da História, contra o iníquo “fim da história”.

        Na América Latina a Espiritualidade da Libertação faz seu “o lema dos reformadores socialistas ortodoxos da Rússia no final do século XIX: ‘a Santíssima Trindade é nosso programa social”’,5 sem deixar de ser o programa total de nossa fé. Porque a Trindade não é só mistério, é “o programa”, a Trindade é o lar e é o destino: dela viemos, nela vivemos, para ela vamos.

        Um pintor latino-americano poderia transpor muito bem, em figuras e símbolos nossos, o ícone da Trindade de Andrej Rublev: os Três são iguais em comunhão de Amor; os Três estão a caminho, com o báculo na mão, porque entraram na história humana; os Três estão sentados à mesa partilhando o alimento da Vida; os Três deixam o espaço aberto para acolher na própria comensalidade a todos os caminhantes dispostos a compartilhar.

 

1. Ver o volume dedicado à Trindade nesta mesma coleção: L. BOFF. A Trindade e a sociedade. Petrópolis, Vozes, 1987.

2. Bruno FORTE. La Trinidad como historia. Salamanca, Sígueme, 1988.

3. Como o irmão Charles de Foucald, os irmãozinhos e irmãzinhas de Jesus e milhares de sacerdotes, religiosas e religiosos, leigos e leigas na América Latina uniram maravilhosamente à espiritualidade da libertação essa aspiração tão humanitária e tão evangélica de ser “Irmãos e irmãs universais”.

4. A Igreja “semper reformanda”: UR 6; GS 43; LG 7,9,35.

5. L. BOFF. Trinidad. Em: Mysterium Liberationü, I, p. 516

 

Pedro Casaldáliga e José María Vigil, Espiritualidade da Libertação, Pág. 104...

Desenho: Cerezo Barredo

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

Nenhum comentário:

Postar um comentário