O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

DOGMAS E HERESIAS DE ALGUMAS TEOLOGIAS FEMINISTAS


Por Ivone Gebara

Escrevo para um espaço de defesa da Pastoral Popular. Não sei dizer se a teologia feminista tem a ver com a pastoral popular. Minhas dúvidas são fundadas visto que a teologia feminista crítica não parece ter modificado o que ainda se ensina na teologia e mesmo na maioria das pastorais populares. Talvez depois da leitura desse texto vocês possam entender melhor a minha dúvida.
Desde a década de 1980 faço teologia feminista. De teóloga da libertação passei a ser teóloga feminista da libertação. Em termos bastante simples isto significa que acordei e fui acordada para a problemática cultural, social e religiosa das mulheres que em meio à premência das lutas libertárias contra os imperialismos e as ditaduras se organizava em muitos lugares. O nó do problema era a especial opressão vivida pelas mulheres denunciada desde a segunda metade do século XX por muitas intelectuais e grupos. Esta denúncia nunca foi seriamente acolhida pela teologia da libertação embora algumas mulheres teólogas fossem acolhidas nas reuniões organizadas pelos teólogos.
A teologia feminista na Igreja Católica constitui-se como uma espécie de heresia à dogmática tradicional. Hoje digo heresia, pois estou convencida disso. Entretanto, não uso mais essa palavra com um sentido negativo. O dogma (dokeo, do grego) é a ‘verdade que tem que ser ensinada’ e a heresia (airesis) é ‘a afirmação que discorda do dogma’, que abre brechas para a escolha, para opções, para o pensamento ditado pelas diferentes circunstancias da vida. É nesse sentido que me considero parte de uma heresia e não na linha daqueles que crêem que existe uma só verdade à qual temos que nos curvar.
Ultimamente, tenho sido de novo atropelada por pessoas e grupos que infelizmente são muito ouvidos pela maioria do episcopado brasileiro. Estes grupos acusam-me de feminista, defensora do aborto, da ideologia de gênero, contraria aos valores da família, desobediente ao Magistério, falsa religiosa etc. A acusação aparece como se eles estivessem com a verdade e do lado de Deus. Eu e outras mulheres e homens estaríamos do lado da mentira e do Diabo.
Creio que precisamos entender mais profundamente, embora de forma breve o que está acontecendo para além das emoções e julgamentos que nos habitam.
Vivemos do ponto de vista cultural, político e econômico numa grande instabilidade que não vem de hoje, embora estivéssemos sentido-a de forma mais aguda nesse momento. Todos querem explicações e acusam-se mutuamente de ser a causa dos males do mundo. É como se precisássemos de ‘bodes expiatórios’ ou ‘cabras expiatórias’ que representem a razão de nossos males. Nessa perspectiva, pergunto-me qual é o mal que representa o feminismo para os grupos que se crêem arautos da verdade ‘revelada’ por seu Deus? Qual é o mal do feminismo para o cristianismo? Para responder a essas questões é preciso dizer em grandes linhas o que tem feito o feminismo e a teologia feminista na nossa cultura.
O feminismo apesar de seus limites desvendou as injustiças sociais, políticas e legais em relação às mulheres e outros grupos. Da mesma forma a teologia feminista desvendou um processo semelhante nas estruturas e nos conteúdos teológicos vigentes por mais libertadores que queiram apresentar-se. Denunciou as estruturas androcentricas tanto na organização, nas políticas e nos conteúdos teológicos do passado e do presente. Denunciou as justificações que fazem da cultura e dos poderes de odor totalitário. Estas denúncias mudam o dogma masculino e os dogmas afirmados como ‘revelações’ de Deus. Sua pretensão epistemológica não é mais aceitável nos dias de hoje. Ela representa uma forma de totalitarismo cognitivo que passa a ser uma espécie de pedagogia de dominação religiosa do povo.
Por muito tempo as mulheres permaneceram como reféns das teorias teológicas em relação a elas, a seu corpo, ao seu poder e submissão e desde o século XIX e XX têm denunciado a cumplicidade das teologias com as políticas de submissão das mulheres. As teologias feministas inspiradas pelo feminismo e por outras leituras dos Evangelhos e da Tradição vão propor outra forma de conhecimento. Vão partir da quotidianeidade da vida, apreender os problemas diversos que se revelam e através deles entender o amor ao próximo e a nós mesmas.  Tenho refletido muito sobre isso e sido pouco compreendida pelos donos da religião de ‘mão única’.
Outro problema central que enfrentamos hoje tem a ver com as questões da sexualidade e reprodução humana ou em outros termos, com o tratamento parcial, injusto que atribuímos às diferentes orientações sexuais na sociedade e na Igreja. Tenho também refletido sobre essas questões à luz de outra interpretação da tradição cristã, talvez mais ética do que metafísica. Reflito sobre nossos corpos de mulheres que engravidam e parem muitas vezes sem escolha e são tratados como ‘objetos’ pecadores e submissos às vontades e leis masculinas. Escrevo e falo da violência que nos é feita em casa e na rua bem pouco considerada pelas igrejas cristãs. Falo da ocultação de nosso valor e da falta de representação significativa nas instancias decisórias das instituições religiosas. Insisto no pouco investimento que se faz na formação das mulheres na Igreja e da falta de respeito que se têm em relação a seu saber.
Isto tudo me leva a afirmar o fato de que na vida nem tudo pode ser rigorosamente regrado pela razão e pela religião dogmática. Os imprevistos, os escorregos, as limitações fazem parte da vida humana e nos ensinam coisas diferentes. Nessa linha não há apenas um único remédio, o oferecido pela hierarquia da Igreja e, sobretudo por uma poderosa elite política que controla a sexualidade humana. Há muitos caminhos diversos e às vezes até contraditórios que podem até ajudar a solucionar um problema ou aliviá-lo.
Tenho falado e escrito sobre todas essas coisas nas minhas aulas, conferências e textos. Reconheço que nesse sentido sou herética assim como tantas outras pessoas o foram para tentar renovar as visões do mundo. Minha postura gera tensões. Resolvi não me defender. Sigo apenas explicando minhas razões e minhas opções éticas. Com alegria percebo que há pessoas e grupos que se encontram com minha maneira feminista de refletir a vida e a história presente. Não tomo o feminismo como uma teoria perene e única verdade. O feminismo é hoje, porque nasceu de nossas necessidades... Amanhã será provavelmente outro o teor de nossas lutas.
Para além do dogma e da heresia gostaria que existisse um diálogo maior entre nós, a partir do qual pudéssemos ouvir uns aos outros e até aprender. Não sei se esse desejo é possível no contexto atual. Mas ele faz parte de minha crença na possibilidade de crescimento qualitativo dos seres humanos. E a vida continua...
Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É uma das principais defensoras da Teologia Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73 anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática 



Nenhum comentário:

Postar um comentário