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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

SEM CONTAR AS MULHERES E AS CRIANCAS


 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 

            Bordão constante da teologia feminista, esta frase que consta da perícope do evangelho de Mateus 15,38, volta hoje – invertida porém – à linha de frente do noticiário e da reflexão teológica.
            O contexto evangélico é a multiplicação dos pães, quando Jesus de Nazaré, a partir da pobreza de sete pães e dois peixinhos, dá de comer a uma imensa multidão faminta.  O texto identifica os personagens masculinos que se alimentaram, mas sem contar as mulheres e as crianças.
            Quando as mulheres entraram no campo da teologia, levantaram suspeita sobre esta frase, mostrando quão machista era a sociedade daquele primeiro século da nossa era.  Também foi assinalado por homens e mulheres que se deixaram tocar pela Escritura quão profunda se revelou a revolução do rabi de Nazaré, para quem as mulheres contavam – e muito! – pois as acolhia e ouvia com carinho, integrava-as em seu seguimento da Galileia até Jerusalém, apontava-as como exemplo a seus discípulos e convertia-as em beneficiárias privilegiadas de seus milagres.
            Também contavam para Jesus as crianças, a quem acolhia com alegria e desvelo, opondo-se aos discípulos que queriam afastá-las porque o perturbariam.  Jesus se alegrava de vê-las, ouvi-las e tê-las por perto, e afirma que delas é o Reino dos céus. 
            Hoje, mulheres e crianças são contados, sim.  Mas a contagem da qual fazem parte é macabra e terrível.  São contados entre as maiores vítimas da violência em nosso país.  A situação mundial não é muito diferente, mas no Brasil a coisa chega a níveis exponenciais. 
            Recentemente, a denúncia de uma mulher que sofreu abuso em um carro da frota Uber surpreendeu a sociedade.  Atacada e ameaçada pelo motorista, tornou pública a agressão na imprensa e nas redes sociais. A vítima, machucada, ofendida, humilhada e desrespeitada, desabafou: "O mundo é um lugar horrível para ser mulher".
                O agressor alegou que ela estava bêbada.  Como se isso fosse atenuante para seu comportamento absolutamente condenável.  Uma mulher independente e solteira, que volta para casa à noite de uma festa ou um encontro com amigos, pode ter ingerido álcool, mas nem por isso se encontra à disposição das taras de machistas e agressores que resolvem abusar de sua vulnerabilidade.  Chama um uber para não descumprir a lei seca que vigora em sua cidade e aquele que devia transportá-la segura para casa a ataca e desrespeita.
                Outro caso foi de um mesmo homem que abusou de várias mulheres em ônibus e transportes públicos.  Seu comportamento chegou ao grau máximo do desrespeito e da violência. Preso e solto em seguida, voltou à cadeia apenas depois de repetir mais de uma vez o mesmo crime. 
                Parece que o mundo evolui, a sociedade avança, as mulheres conquistam direitos e galgam degraus na escala social, mas a mentalidade machista permanece intocada.  E para estes homens elas não contam.  São objetos para serem usados e abusados, segundo a vontade e o desejo do macho. A cada 2 minutos uma mulher sofre violência no Brasil. Essa estatística parece haver aumentado nos últimos tempos.  Talvez porque hoje as mulheres já não se calem; elas denunciam os abusos e as agressões recebidas e os expõe no espaço público. 
                Com as crianças o panorama não é muito diferente. Desde o espancamento doméstico, onde as agressões à mulher acabam atingindo igualmente os filhos, até as balas perdidas que interrompem a vida de crianças pequenas e indefesas, a violência contra os menores só faz aumentar.  Violência anônima, que não mostra o rosto e atinge os pequenos que estão começando a vida, interrompendo brutalmente sua infância.  As crianças não contam, assim como as mulheres.  E a violência os atropela, semeando morte e terror entre aqueles que são os mais vulneráveis de um tecido social esgarçado e sem consistência.
                O mundo é um lugar terrível para ser mulher.  E para ser criança.  E para ser cidadão que passa tranquilamente pela rua, mas tem esse simples direito cassado pela violência, pelo terror, pela cegueira agressora, para a qual não contam os cidadãos pacíficos que estão apenas exercendo seu direito de ir e vir.  Mais ainda quando são mulheres e crianças. 
                Urge uma conversão em nível comunitário, social, e não apenas individual.  A humanidade é composta por homens e mulheres.  As crianças estão no mundo para serem protegidas e educadas.  Não para serem agredidas, desrespeitadas, espancadas e assassinadas.  Apenas quando o machismo e a violência por ele gerada forem superados, poderemos, enquanto sociedade, viver a alegria do Evangelho de Jesus e ver acontecer o Reino por Ele prometido. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de"Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco), entre outros livros.
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