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quinta-feira, 10 de março de 2022

ARTE DE ENVELHECER

 Frei Betto


 

       Quando criança, considerava meus avós muito velhos. A bisavó, então, uma Matusalém… E possivelmente nem tivessem 60 anos. Nosso olhar é condicionado também pela faixa etária. E a nossa idade, pelo olho do outro. Por mais que eu insista, alguns sobrinhos não conseguem me chamar apenas pelo nome. O “tio” é inevitável.

       Nos damos conta de que já não somos jovens quando passam a nos tratar de “senhor” e “senhora”. Na cultura dionísiaca que respiramos não é fácil assumir a velhice. O Brasil ocupa o segundo lugar no mundo em cirurgias plásticas de rejuvenescimento, depois dos EUA. As mulheres são quem mais padecem. A cultura machista aceita homem barrigudo, careca, desengonçado. Mas ai da mulher se não for esbelta, desenrugada e bem vestida!

       A vida pode ser dividida em duas fases: a da sorveteria e a da farmácia. Embora a criança sofra mil restrições de liberdade, ao menos pode mergulhar num pote de açúcar sem que ninguém lhe chame a atenção. Na velhice, um dos lugares que mais frequentamos é o consultório médico. O corpo dá sinais de que a fase apolínea acabou. E haja despesas com medicamentos! 

       A senectude é, sobretudo, uma tensão psicológica que nos induz a superdimensionar as possibilidades do próprio corpo. Óbvio, não podemos voar apenas abrindo os braços para que se transformem em asas. Entretanto, na idade provecta guardamos a memória do que já não somos capazes e que, agora, restam como lembranças, já que há progressiva dissociação entre a mente e o corpo. A memória, esfuziante, prazenteira, nos faz bailar pelos infinitos salões da imaginação sem, contudo, lograr que haja correspondência nas pernas e nos pés. Envelhecer é diminuir inelutavelmente os passos, sair da celeridade das ruas para a sala de espera da morte, ainda que convictos de que seremos tardiamente atendidos. 

       Não somos educados para encarar a velhice com sabedoria. Em meus 22 anos de bancos escolares, jamais foi tema. Faz-se dela um tabu. Nessa sociedade de “campeões”, o velho é quase um doente. O próprio termo sofre censura e exige eufemismos: terceira idade, melhor idade etc. Ai de quem disser: “Como você envelheceu!” Melhor escutar “Como você está bem!”, como quem oculta o subtexto: “Eu esperava encontrá-lo em avançado estado de decrepitude”. 

       Os sintomas da velhice são clandestinizados até a corda arrebentar. Tingem-se cabelos brancos, botoxicam-se as rugas, escondem-se as idades. Porque velhice é sinônimo de inatividade, embora os fatos não confirmem. É cada vez maior o número de idosos (acima de 60 anos) em plena atividade laboral. É o meu caso. Isso apesar de muitas empresas estabelecerem um limite de idade a seus funcionários. Demissão compulsória. Um erro calcado em preconceito, o de que a idade biológica coincide com a mental e intelectual. 

       Foi após os 60 anos que minha mãe, Maria Stella Libanio Christo, se tornou autora de renomados livros de culinária. Cora Coralina começou a publicar aos 75. Knut Hamsun, Nobel de Literatura em 1920, escreveu “Pelos atalhos fechados” (1949), uma de suas obras de maior sucesso, aos 90. Victor Hugo publicou “Os miseráveis” aos 60. E J.R.R. Tolkien, autor da trilogia “O senhor dos anéis”, aos 62. 

       O mundo envelhece. Em muitos países os governos entram em pânico porque o número de idosos tende a superar o de jovens. Felizmente no Brasil temos o Estatuto do Idoso. Apesar disso, o setor de serviços insiste em ignorar a realidade. Quantos balcões de atendimento ao público (repartições, lojas, bancos) são precedidos de cadeiras? Como o idoso pode ter acesso ao banheiro ao se encontrar na rua? Em quais e quantos municípios os agentes de saúde percorrem os domicílios para acompanhar os mais velhos? 

       Gosto de ser velho, embora lamente não ter a mesma agilidade física de outrora. O bom da velhice é não ter morrido jovem. E em vez de encará-la como etapa final da vida, mantenho o olhos em meu passado e colho autoestima. Não haverá de constar da lápide do meu túmulo o verso de Fernando Pessoa: “Fui o que não sou”. 

       Nunca pretendi ser o que não sou. Cedo, blindei-me contra as três tentações sofridas por Jesus e todos nós: ter, prazer e poder. “Nada é bastante para quem considera pouco o suficiente”, dizia Epicuro. Para mim, o necessário é suficiente. Não acumulei bens e, portanto, jamais perdi tempo e sono em administrá-los. 

       Levo da vida o que trago em mim. E meus prazeres pouco têm a ver com os cinco sentidos. Decorrem da meditação, do ofício de escrever, das amizades. E cuidei para me livrar de qualquer instância de poder. Nunca me filiei a partido político. Na Igreja, optei por não ser sacerdote, o que me impede de subir qualquer degrau hierárquico. 

       O que mais me faz feliz é fazer os outros felizes. Isso não significa que me julgo melhor que os outros. Conheço bem meus pecados, defeitos e erros. Mas ao menos Deus me permitiu abraçar o que mais nos livra do medo da morte: um sentido à existência. 

 

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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