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segunda-feira, 7 de março de 2022

AMANDO PETRÓPOLIS

        Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

     Para Bruno Albuquerque, em memória de Bernardo e Sarah

 

            Talvez meu amor por esta cidade das montanhas da Serra do Mar esteja ligado a algo mais visceral do que sua beleza ao mesmo tempo augusta e pacífica; a seu clima ameno, tão convidativo quando o Rio ferve sob 40 graus à sombra.  Talvez não seja apenas as doces recordações dos verões passados aqui, quando meus filhos eram pequenos e eu os via correr com amigos – tantos e tão queridos – e saírem em bando e em segurança para festinhas e bailinhos de carnaval.  

            Não, não é apenas uma memória nostálgica de dias pacíficos e descansados, vividos e desfrutados sem pressa e com sabor delicioso. Em meio a toda essa teia de amores vividos na cidade florida e acolhedora está a figura de meu pai, que adquiriu a casa que agora herdei.  Quando aqui estou, lembro-me do último verão que aqui passamos com ele saudável e forte, cuidando do jardim e sobretudo da jabuticabeira que todo ano enchia os galhos com redondas e saborosas frutinhas pretas.  E sorvíamos a polpa e éramos felizes.  

            Eu tinha oito anos nesse verão e minha infância foi duramente atingida por sua morte alguns meses depois, levado prematuramente por uma doença cruel e fulminante.  Não voltei mais a Petrópolis por muitos anos. Já casada e com meu segundo filho recém-nascido, revisitei a casa da minha infância e fui feliz outra vez.  E agora, já avó, aqui venho descansar e cuidar desta casa, recebendo ocasionalmente a visita de filhos, netos e amigos. 

            Aqui estava no dia 15 de fevereiro, quando a água parecia querer carregar com sua força e fúria a cidade da minha infância. Durante três a quatro horas assistimos, impotentes, desde o interior da casa a cortina de água que não permitia sequer ver o jardim e muito menos a calçada.  Quando amainou, olhamo-nos nos olhos, meu marido e eu, com a intuição silenciosa e pasma dos sobreviventes. Pouco depois, a luz acabou. A casa estava intacta e nós também.  Mas ainda não sabíamos de toda a extensão da catástrofe que havia retalhado a cidade que amamos. 

            Dois dias sem eletricidade, obrigada a ir ao café da esquina para tranquilizar familiares e amigos, desmarcar compromissos de trabalho em home office etc.  Foi esse o tempo também de receber as notícias trágicas, que nunca gostaríamos de ter lido e ouvido.  As perdas, os desastres, mas sobretudo as mortes. São notícias que dão ao mesmo tempo a medida do tamanho da catástrofe, mas igualmente da capacidade de resiliência do ser humano e sua incrível resistência em meio à adversidade. 

            São imagens que jamais abandonarão minhas retinas e minha memória.  A mãe cavando o barro com uma enxada em desesperada tentativa de encontrar o corpo da filha adolescente.  O pai que, constatando que o esforço das buscas ia na direção de escavar os escombros em busca de corpos, passou a buscar por conta própria o filho adolescente que tomara um ônibus e fora tragado pelo rio e se encontrava perdido na rede fluvial da cidade. O jovem professor que celebrava o primeiro dia do filho de cinco anos na escola e em minutos perdeu a casa e tudo que possuía, porém mais que isso: os sogros, a esposa, o filho que levava ao colo e a filhinha bebê de um ano de idade. 

            Como não se enlouquece vivendo uma situação dessas?  De onde vem a força que faz seres humanos que passaram por essa tragédia ainda conseguirem falar, dar entrevistas à mídia, explicar, resistir e sobretudo...continuar? Além desses, as centenas de desabrigados que não têm onde morar e dependem da solidariedade alheia; como despertam a cada dia e seguem em frente?

            Sentimento análogo era o que emergia olhando para a cidade bela e querida.  Suas ruas e seu centro histórico encontravam-se enlameados, com muitos edifícios, lojas e casas totalmente destruídas. O cenário era de guerra.  Nos bairros onde havia construções nas encostas, derrubadas pelos deslizamentos, o lixo misturava-se aos destroços e ao barro. E neste cenário de guerra bombeiros e cães farejadores buscavam corpos.  Fotos, objetos e pertences se misturavam ao rastro da lama e da destruição, carregando consigo a história de vida de tantos e tantas. 

            Petrópolis agora não é mais apenas o suave lugar da minha paz e a doce recordação da minha infância e da infância dos meus filhos.  É um lugar de sofrimento e dor. A cidade que amei e amo está ferida e precisa ser reconstruída.  Tenho fé que assim será.  O volume da solidariedade que chegou após a chuva dá a dimensão de como essa cidade é amada. 

Apesar da negligência e da incúria do poder público, da falta de um planejamento urbano, aliado à mudança climática e às tempestades de verão que todo ano acontecem e vitimam algum ponto dessa bela serra fluminense, e a fizeram cair e deslizar sob a lama, ela ressuscitará. 

            Para isso é necessária a persistência na solidariedade e igualmente na reivindicação de um melhor planejamento urbano.  É necessário um amor forte e constante que crê ser a vida mais forte que a morte.  Mas também e não menos uma prática de amor que ampare os que estão desamparados e confia que Deus não paira acima dos acontecimentos,  sofre junto com as vítimas, chorando seu pranto e dando força a seu coração. 

            Amando Petrópolis... sempre.  

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Experiência de Deus na Contemporaneidade: Entre o viver e o contar” (Editora Paulinas), entre outros livros.

 

 

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