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sexta-feira, 2 de maio de 2014

JOÃO XXIII: O QUE OS JUDEUS ME ENSINARAM

por  Maria Clara Bingemer
                                             https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHzjVZ5DutIYzePIwY8nHAS2uZs9an7sXIGGklS9La9zgd48YMCLulbubR6JgT1jreONcql55-4cwxwMIPRYvaQclCqFrEGQjVwxDK_mzJZdGD_DUyVO2xbidY4_MpB54HnyddTJMsltI/s1600/clara+2.jpg
          Corria o ano de 1993 e eu trabalhava dividindo meu tempo entre a PUC-Rio e o Centro de   Investigação e Ação Social (CIAS), também chamado Centro João XXIII, da Companhia de Jesus, na Rua Bambina 115. Lá, coordenava o projeto chamado Diálogo entre fé e cultura.         
 Um dia veio ver-me um senhor judeu de nacionalidade argentina, que morava em São Paulo.  Perguntou-me se não íamos fazer nada para comemorar a data tão significativa que acontecia aquele ano.  Delicadamente mostrei-lhe que não sabia do que falava e perguntei-lhe de que se tratava.  Ele esclareceu: fazia 30 anos da morte de João XXIII.
Entre envergonhada e animada, dispus-me a organizar junto com ele o que fosse preciso a fim de preparar uma bela comemoração pelo trigésimo   aniversário da morte do Papa João.  Assim fizemos.
          O evento reuniu umas 100 pessoas no auditório da Rua Bambina.  Estavam presentes judeus, cristãos e pessoas não ligadas a nenhuma instituição religiosa.  A conferência de abertura foi dada pelo co-organizador que - surpreendendo toda a audiência ao colocar como fundo musical a Ave Maria de Gounod – narrou sua experiência com o Papa João, que chamou durante todo o tempo de “Juan el Bueno”.
          Contou o que foi sua infância de menino judeu na Argentina, em uma comunidade forte e numerosa, mas em um país maciçamente católico.  Sentia a discriminação, a rejeição, muitas vezes pesar sobre seus ombros e sua vida. Sofria quando, em alguma cerimônia católica da qual devia participar, ouvia a expressão “pérfidos judeus” ser proclamada no templo e receber o Amém da assembleia. Até que apareceu o Papa João, “Juan el Bueno”.
          O orador seguia, cada vez mais emocionado, narrando os feitos pró-judaicos do Papa bom. Durante a Segunda Guerra Mundial, sediado na Turquia neutra, conseguiu salvar muitos judeus perseguidos pelo nazismo com a distribuição gratuita de permissões de trânsito fornecidas pela Delegação Apostólica, certificados de batismo temporários e documentos de imigração para a Palestina, arranjados por organizações judaicas.
          O que mais edificava o orador era o respeito de “Juan el Bueno” pelos judeus. Não cogitou convertê-los à força. Diante da ameaça de extermínio, sentiu-se obrigado a defender suas vidas, ainda que isso implicasse uma interpretação não tão usual do Direito Canônico.
          Ao mencionar que o Papa João retirou da liturgia da Sexta-feira Santa as duras expressões relativas aos judeus e inaugurou uma nova era de relacionamento e diálogo judaico-católico, o orador mostrava-se emocionado.  “Juan el Bueno” influenciou a composição da declaração Nostra Aetate, do Concílio Vaticano II, aprovada apenas após sua morte e que é peça chave no diálogo com   os judeus.  Neste documento, a Igreja rejeita definitivamente as acusações de deicídio ao povo judaico e condena o antissemitismo.
          Quando terminou sua fala, o orador estava em lágrimas e boa parte da audiência também.  Alguns de nós  - católicos - conheciam um pouco ou talvez apenas parte deste lado do Bom Papa João. Mas certamente nunca havíamos escutado um depoimento como esse de um judeu que viu transformada sua visão e concepção do Cristianismo e da Igreja Católica por uma figura como a do papa João.
          Ele terminou recitando uma poesia de sua autoria, que compôs ainda menino adolescente em   Buenos Aires, quando chegou a notícia da morte de João XXIII.  Na singeleza da linguagem infantil e na autêntica emoção que ela transmitia, cada vez que repetia o refrão: “Murió Juan el Bueno”. A tristeza do menino judeu argentino era igualmente a de milhões que se sentiram órfãos de alguém que se comportou para com eles como um pai.  Um homem bom, que os tratou com amor e caridade, não se importando que sua cultura e sua religião fossem outras, no respeito à diferença e na integração da mesma.  
          Hoje, a Igreja Católica vive a alegria de contar “Juan el Bueno” entre seus santos canonizados.  Para todos os católicos isso implica, além de uma honra, um compromisso: edificar uma comunidade eclesial aberta às diferenças, sem discriminações ou preconceitos, onde todo ser humano possa encontrar a acolhida de uma casa e a presença de irmãos, além de uma instancia de diálogo.  A perene paternidade do bom Papa João será sempre inspiradora nesse sentido.
   Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.

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