Por Leonardo Boff
Neste dia mundial da água, convém
fazermos pequena reflexão sobre o que ela significa e as ameaças que pesam
sobre esse bem tão vital. Pois a questão da água potável constitui um dos
maiores problemas da humanidade, tão grave quanto o aquecimento global.
Consideremos os dados básicos acerca da água. Ela é extremamente
abundante e simultaneamente extremamente escassa.
Existe cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos de água na Terra. Se
tomarmos toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios, aquíferos e calotas
polares e distribuíssemos equitativamente sobre a superfície terrestre, toda a
Terra ficaria mergulhada na água a três km de profundidade. 97% é água salgada
e 3% é água doce. Mas somente 0,7% desta é diretamente acessível ao uso
humano.
A
renovação das águas é da ordem de 43 mil km cúbicos/ano, enquanto o consumo
total é estimado em 6 mil km cúbicos/ano. Há, portanto, superabundância de água
mas desigualmente distribuída: 60% se encontra em apenas 9 países,
enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas
consome 86% da água existente enquanto para 1,4 bilhões é ela insuficiente (em
2020 serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das
doenças constatáveis.. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas
serão afetadas pela crise de água.
O
problema não é a escassez de água mas sua má gestão para atender as demandas
humanas e dos outros seres vivos da natureza.
O Brasil é a potência natural das águas, com 13% de toda água
doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Apesar da
abundância, 46% dela é desperdiçada, o que daria para abastecer toda a
França, a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália.
Por ser um bem cada vez mais
raro, ela é objeto da cobiça daqueles que querem fazer dinheiro com ela. Por
isso nota-se uma corrida mundial para a privatização da água. E então surge o
dilema:
A água é fonte de vida ou fonte
de lucro? É um bem natural, vital e insubstituível ou um bem econômico e uma
mercadoria?
Os que apenas visam lucro, tratam a água como mercadoria e no máximo como
recurso hídrico. Os que dão centralidade à vida, como a maior criação do
universo e o supremo dom de Deus, a vêem como bem essencial aos seres humanos e
a todos os organismos vivos.
O direito
sagrado à vida implica o direito à água potável gratuita. Mas pelo fato de
haver custos na sua captação, no seu tratamento, distribuição, uso e reuso
existe inegável dimensão econômica. Mas isso não justifica que ela se
transforme em fonte de lucro. Os custos não podem invalidar o direito. Os
custos devem ser cobertos pelo poder público e pela a sociedade com fundos
destinados ao acesso universal de água doce.
Há de se questionar
a expressão “água como recurso hídrico”. Ela, propriamente, não é recurso. É patrimônio
natural que herdamos e que devemos preservar para todos os seres vivos atuais e
futuros. Água é vida. Por isso os cientistas buscam água em Marte, porque
sabem, se existe água lá, estão dadas todas as condições para a vida, por mais
rudimentar que seja.
Quando falamos em água como vida ressoam em nós outros valores como vida,
fecundidade, purificação, renascimento. Todos estes temas estão presentes nas
religiões que transformaram a água num dos símbolos fundamentais de Deus,
e nós cristãos de Cristo e da vida eterna.
A água tem imenso valor mas não tem preço. Para garantir água para todos faz-se
mister uma ética do cuidado de suas fontes, das matas ciliares junto aos rios e
de sua purificação. Por ser desigualmente distribuída na natureza, o
direito de todos à água demanda uma ética da solidariedade na sua
distribuição. E para que não haja desperdício precisamos de uma ética da
responsabilidade; o que jogamos fora fará falta a outros.
Se houver cuidado, solidariedade e responsabilidade a Terra será generosa e
garantirá água abundante para todos e de qualidade.
*Leonardo Boff é filósofo e
teólogo, escritor, assessor do projeto Cultivando Agua Boa da Itaipu
Binacional e um dos co-redatores da Carta da Terra
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