por Frei Betto
Na data do
golpe militar, eu participava em Belém (PA) do congresso latino-americano de
estudantes. Nunca havia vivido um golpe e, muito menos, uma ditadura. Meu pai, no
entanto, sofrera sob o Estado Novo de Vargas, padecera prisão, e se vira
obrigado a deixar o Rio e retornar a Minas ao assinar o Manifesto dos Mineiros.
Na capital
paraense as notícias chegavam confusas e difusas. Pelas ruas, viaturas
militares. Lideranças estudantis de outros países do Continente, já acostumadas
a quarteladas, preferiram dissolver o congresso. Foi o salve-se quem puder...
Como membro
da direção nacional da Ação Católica, eu estava hospedado na residência do
arcebispo Dom Alberto Ramos, a convite de seu bispo auxiliar, Dom Milton
Pereira. Este era progressista; o outro, conservador.
Na noite do
1º de abril, vi na TV o arcebispo dar loas à Virgem de Nazaré por livrar o
Brasil do comunismo, e sugerir que entre seu clero havia quem sofresse
influência marxista... Dom Milton aconselhou-me buscar refúgio fora dali.
Fui para a
casa de Lauro Cordeiro, militante da JEC (Juventude Estudantil Católica). Ali,
de ouvidos colados ao rádio, tentávamos avaliar o que ocorria no Sudeste do
país. Jango fora deposto e buscara exílio no Uruguai. Ranieri Mazzilli,
presidente da Câmara dos Deputados, assumira a presidência da República sob
tutela dos militares. Estes impunham novas eleições presidenciais a 11 de
abril, pelo voto apenas de membros do Congresso Nacional que ainda não haviam
sido cassados.
Mas... cadê
a resistência de toda aquela multidão que aplaudira Jango no megacomício de 13
de março, no Rio? E a militância do Partidão, onde se enfiara? A esquerda não
bradava ser capaz de mobilizar milhares de trabalhadores em caso de ameaça de
golpe? Por que as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho viera de
Minas ao Rio sem se deparar com nenhum empecilho?
Nossos
sonhos libertários se derretiam como os saborosos sorvetes da Tip Top, a mais
famosa sorveteria da capital paraense. Após nove dias esperando a poeira
baixar, decidi retornar ao Rio, onde morava.
Minha
passagem aérea tinha sido cedida por Betinho, então chefe de gabinete do
ministro da Educação, Paulo de Tarso dos Santos. Deparei-me com a agência da
Varig repleta de pessoas afoitas por viajarem. Ao ser atendido, fui informado
de que “estão canceladas todas as passagens de cortesia emitidas pelo governo
anterior”. Sem dinheiro, me senti desamparado.
Na capa da
passagem (outrora os bilhetes aéreos vinham encadernados) havia o carimbo de
“Cancelado”. Rasguei a capa e estendi-a ao funcionário que avisava não ter mais
assento vago em voos diretos para o Rio, a menos que o passageiro fizesse
escala no Recife. Consegui embarcar.
Cheguei à
capital pernambucana a 10 de abril, dia da posse de Dom Helder Camara como
arcebispo de Olinda e Recife. Ele havia sido o responsável pela minha
transferência de Minas para o Rio e cuidava da manutenção do apartamento das
direções da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica).
Talvez por
captar minha aflição, Dom Helder, após a missa de posse, deixou a recepção por
alguns minutos para ouvir o relato do que eu presenciara em Belém. Em seguida,
embarquei para o Rio, tomando assento ao lado de Dom Cândido Padin, bispo
auxiliar do Rio e assessor nacional da Ação Católica.
Ao
aterrissar no aeroporto Santos Dumont, o piloto avisou que todos deveriam
permanecer a bordo, pois a Polícia Federal entraria para conferir a identidade
de cada passageiro. Passei a Dom Padin todos os documentos do congresso de
estudantes, temendo que fossem considerados subversivos. Ele os escondeu dentro
do hábito beneditino.
Ao ingressar
na aeronave, os policiais avistaram a figura episcopal: “O bispo pode desembarcar”,
disseram. Todos os demais fomos identificados e revistados. Desembarquei ileso.
Na madrugada
de 5 para 6 de junho de 1964, o apartamento da direção da Ação Católica foi
invadido por agentes do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Fomos todos
arrastados para o Comando Naval, no centro do Rio, e depois encarcerados no
quartel dos fuzileiros navais, na Ilha das Cobras.
A ditadura
me atingira na pele, pela primeira vez, para mais tarde me prender por quatro
anos (1969-1973) e cassar por dez meus direitos políticos.
Frei Betto é
escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar
brasileira” (Rocco), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/>
twitter:@freibetto.
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