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quarta-feira, 5 de março de 2014

SOBRE CONSTANTINO, LUTERO, RELIGIÃO E ESTADO LAICO



 Por  J u r a c y   A n d r a d e



     Tenho criticado frequentemente as tentativas de voltar no tempo e engrenar de novo religião com política. As religiões oficiais eram na antiguidade algo natural (o que ainda prossegue em inúmeros países). Cada civilização, nação ou mesmo cidade tinha seu deus ou seus deuses , que faziam parte dos símbolos de poder. Quando São Paulo chegou a Éfeso e começou a pregar o Evangelho de Jesus Cristo, provocou grande revolta popular, quase o lincharam bradando (na versão da Vulgata) “Magna Diana ephesiorum” (grande é Diana dos efésios). A deusa fazia parte, digamos assim, da nacionalidade e identidade locais. A pregação primitiva do Evangelho não só colocou o Deus único dos judeus acessível a todos (os gentios, ou não judeus), como também acima de identidades nacionais. Seguindo o que o Mestre pregara ao falar que se devia dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

    Essa distinção, uma novidade salutar, durou pouco na prática do cristianismo já apartado da religião do Antigo Testamento. Bastou aparecer um imperador romano preocupado com a decadência dos seus domínios, Constantino, para que papas e outros sucessores dos apóstolos se deixassem cooptar e aceitassem que o cristianismo se tornasse a religião oficial do Império Romano. Os pagãos perseguidores de ontem passaram a perseguidos; papas e bispos se deixaram transformar em dignitários imperiais e a obedecer ao imperador na convocação de concílios e perseguição aos caracterizados como hereges. Quando Constantino fundou Constantinopla, hoje a turca Istambul, e para lá transferiu sua corte, o bispo patriarca da cidade se tornou um rival do bispo de Roma. Alguns séculos depois, começavam os grandes cismas ou divisões na Igreja.

      No século 16, quando o monge agostiniano Martinho Lutero, revoltado contra a prepotência do papa, as imposições centralizadoras da Igreja de Roma, a venda de indulgências, pregou na porta da igreja de Wittenberg as suas famosas 95 teses, à frente a salvação só pela fé, uma nova possibilidade de restauração daquele preceito de Cristo surgiu. Lutero não pretendia criar uma nova Igreja, mas, diante da soberba e indiferença do papa Leão 10º, foi se afastando de Roma. Mais tarde, aceitou a interferência de príncipes alemães na preservação do que se convencionou chamar de protestantismo (protesto contra excrescências agregadas à Igreja de Cristo.

     Hoje, muitos protestantes que se autointitulam neopentecostais esqueceram completamente o sentido da revolta e do protesto de Lutero e de outros reformadores, partiram para uma religião de resultados práticos (teologia da prosperidade) e confundem a extremos as esferas da fé, da religião, com a da política e dos partidos. Tornou-se comuníssimo ouvir expressões como deputado evangélico (parece que não gostam da primitiva denominação “protestante”), vereador pastor, bancada evangélica. A propósito, encontrei, na excelente revista protestante ecumênica Ultimato, um artigo do professor Paul Freston em que ele tece considerações sobre Estado laico, secularização e relações da religião com vida pública e Estado ao redor do mundo.

     Escreve o autor: “Nas últimas décadas, muitos estudiosos abandonaram (pelo menos parcialmente) a teoria da secularização” (quanto mais moderno mais secular) “e adotaram a ideia de modernidades múltiplas (há várias maneiras de ser moderno, inclusive maneiras religiosas). A religião continua (ou volta a estar) em evidência na vida  política de várias regiões do mundo”. Ele constata que o Brasil é singular no corporativismo eleitoral protestante bem sucedido Ou seja, a prática de várias denominações apresentarem candidatos “oficiais” em eleições e convencerem boa parte dos seus membros a votar nesses candidatos, elegendo-os para o Congresso, assembleias e câmaras de vereadores.

     Outra observação interessante de Freston é sobre essa singularidade brasileira. O que torna possível esse modelo corporativista? A junção de vários fatores, principalmente o nosso sistema eleitoral, sistema partidário fragmentado, volátil e pouco ideológico, e a organização dos mass media no Brasil, que possibilita uma presença maciça das igrejas através da compra de horários e da aquisição de concessões. Acredita ainda o autor que o estilo corporativista de fazer política dos protestantes, sobretudo pentecostais, não deve durar para sempre, devido a uma tendência, que ele detecta, a uma estabilização do crescimento das igrejas protestantes, uma maior interação com outras religiões e uma mudança na maneira de relacionar-se com a política.

       É um ponto de vista que vale a pena considerar, mas continuo achando que uma reforma política decente poderia melhorar a qualidade dos partidos brasileiros e reconduzi-los a uma politica laica, de acordo com a Constituição. E que a “evangelização” da política, além de não ser boa nem para as religiões nem para o Estado e a política, fere os preceitos de Jesus Cristo sobre a distinção e separação entre Deus e César e sobre a realidade de que o seu Reino não é deste mundo.


Juracy Andrade é jornalista com formação em filosofia e teologia

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