Por J u
r a c y A n d r a d e
Tenho
criticado frequentemente as tentativas de voltar no tempo e engrenar de novo religião
com política. As religiões oficiais eram na antiguidade algo natural (o que
ainda prossegue em inúmeros países). Cada civilização, nação ou mesmo cidade
tinha seu deus ou seus deuses , que faziam parte dos símbolos de poder. Quando
São Paulo chegou a Éfeso e começou a pregar o Evangelho de Jesus Cristo,
provocou grande revolta popular, quase o lincharam bradando (na versão da
Vulgata) “Magna Diana ephesiorum” (grande é Diana dos efésios). A deusa fazia
parte, digamos assim, da nacionalidade e identidade locais. A pregação
primitiva do Evangelho não só colocou o Deus único dos judeus acessível a todos
(os gentios, ou não judeus), como também acima de identidades nacionais.
Seguindo o que o Mestre pregara ao falar que se devia dar a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus.
Essa
distinção, uma novidade salutar, durou pouco na prática do cristianismo já
apartado da religião do Antigo Testamento. Bastou aparecer um imperador romano
preocupado com a decadência dos seus domínios, Constantino, para que papas e
outros sucessores dos apóstolos se deixassem cooptar e aceitassem que o
cristianismo se tornasse a religião oficial do Império Romano. Os pagãos
perseguidores de ontem passaram a perseguidos; papas e bispos se deixaram
transformar em dignitários imperiais e a obedecer ao imperador na convocação de
concílios e perseguição aos caracterizados como hereges. Quando Constantino
fundou Constantinopla, hoje a turca Istambul, e para lá transferiu sua corte, o
bispo patriarca da cidade se tornou um rival do bispo de Roma. Alguns séculos
depois, começavam os grandes cismas ou divisões na Igreja.
No
século 16, quando o monge agostiniano Martinho Lutero, revoltado contra a
prepotência do papa, as imposições centralizadoras da Igreja de Roma, a venda
de indulgências, pregou na porta da igreja de Wittenberg as suas famosas 95
teses, à frente a salvação só pela fé, uma nova possibilidade de restauração
daquele preceito de Cristo surgiu. Lutero não pretendia criar uma nova Igreja,
mas, diante da soberba e indiferença do papa Leão 10º, foi se afastando de
Roma. Mais tarde, aceitou a interferência de príncipes alemães na preservação
do que se convencionou chamar de protestantismo (protesto contra excrescências
agregadas à Igreja de Cristo.
Hoje,
muitos protestantes que se autointitulam neopentecostais esqueceram
completamente o sentido da revolta e do protesto de Lutero e de outros
reformadores, partiram para uma religião de resultados práticos (teologia da
prosperidade) e confundem a extremos as esferas da fé, da religião, com a da política
e dos partidos. Tornou-se comuníssimo ouvir expressões como deputado evangélico
(parece que não gostam da primitiva denominação “protestante”), vereador
pastor, bancada evangélica. A propósito, encontrei, na excelente revista
protestante ecumênica Ultimato, um
artigo do professor Paul Freston em que ele tece considerações sobre Estado
laico, secularização e relações da religião com vida pública e Estado ao redor
do mundo.
Escreve
o autor: “Nas últimas décadas, muitos estudiosos abandonaram (pelo menos
parcialmente) a teoria da secularização” (quanto mais moderno mais secular) “e
adotaram a ideia de modernidades múltiplas (há várias maneiras de ser moderno,
inclusive maneiras religiosas). A religião continua (ou volta a estar) em
evidência na vida política de várias
regiões do mundo”. Ele constata que o Brasil é singular no corporativismo
eleitoral protestante bem sucedido Ou seja, a prática de várias denominações
apresentarem candidatos “oficiais” em eleições e convencerem boa parte dos seus
membros a votar nesses candidatos, elegendo-os para o Congresso, assembleias e
câmaras de vereadores.
Outra
observação interessante de Freston é sobre essa singularidade brasileira. O que
torna possível esse modelo corporativista? A junção de vários fatores,
principalmente o nosso sistema eleitoral, sistema partidário fragmentado,
volátil e pouco ideológico, e a organização dos mass media no Brasil, que possibilita uma presença maciça das
igrejas através da compra de horários e da aquisição de concessões. Acredita
ainda o autor que o estilo corporativista de fazer política dos protestantes,
sobretudo pentecostais, não deve durar para sempre, devido a uma tendência, que
ele detecta, a uma estabilização do crescimento das igrejas protestantes, uma maior
interação com outras religiões e uma mudança na maneira de relacionar-se com a
política.
É
um ponto de vista que vale a pena considerar, mas continuo achando que uma
reforma política decente poderia melhorar a qualidade dos partidos brasileiros
e reconduzi-los a uma politica laica, de acordo com a Constituição. E que a
“evangelização” da política, além de não ser boa nem para as religiões nem para
o Estado e a política, fere os preceitos de Jesus Cristo sobre a distinção e
separação entre Deus e César e sobre a realidade de que o seu Reino não é deste
mundo.
Juracy Andrade é jornalista com formação em
filosofia e teologia
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