Por Maria Clara Bingemer
A Igreja
respira encantada com o Papa Francisco e o movimento que inaugurou e mantém de
volta ao Concílio Vaticano II e sua renovação. Seu pontificado vem
marcado por essa retomada do espírito de liberdade e abertura daquele
inesquecível evento eclesial que aconteceu há 50 anos.
Na América Latina, a recepção deste Concílio se deu em uma direção bem marcada
de fidelidade ao contexto do continente, feito de pobreza, injustiça e
opressão. Toda a Igreja do continente releu o grande evento do Vaticano
II com uma atenção qualificada àquelas grandes maiorias que se encontravam mais
necessitadas, mais fragilizadas e mais empobrecidas. A chamada opção
preferencial pelos pobres foi o nome cunhado para “batizar” essa escolha
evangélica feita pela comunidade eclesial naquele momento histórico.
Após um tempo longo que já foi chamado por grandes teólogos e pessoas da Igreja
de “inverno eclesial”, onde parecia que – entre outras – a primordialidade dos
pobres havia ficado na sombra, eis que foi lançado recentemente em Roma o livro
do Prefeito para a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Müller:
“Ao lado dos pobres”. Trata-se da mais alta autoridade em termos de doutrina da
Igreja Católica e, portanto, guardião da indiscutível legitimidade do conteúdo
do livro.
Mas
há mais: Müller não escreveu o livro sozinho. Acompanhou-o outro teólogo:
o pai da Teologia da Libertação, o sacerdote peruano da Ordem dos Pregadores,
Gustavo Gutiérrez. No prefácio, Joseph Sayer, presidente da Obra
Assistencial Misereor, identifica o teólogo peruano como uma pessoa
apaixonada. E como não haveria de sê-lo quem passou a vida servindo os
pobres, vivendo junto a eles e lidando apaixonadamente com a pergunta:
“Como se pode falar do amor de Deus perante a miséria dos pobres e a
injustiça do mundo?”.
Ou
seja, o alerta lançado por Hans Jonas após a Segunda Grande Guerra e o
holocausto nazista: “Como falar de Deus depois de Auschwitz”? ecoa novamente
diante de outro genocídio: aquele cotidiano que mata continuamente milhares e
mesmo milhões de pessoas em todo o planeta. Gustavo Gutiérrez descobriu,
vivendo perto dos pobres, que toda teologia deve fazer-se esta pergunta e
deixar-se atingir por ela, para então construir seu discurso sobre Deus.
Pois, concordando com a frase de Berdiaev, “se eu tenho fome, é um problema
biológico. Se o meu irmão tem fome, é um problema teológico”.
E
foi justamente a pobreza do outro a interpelar com pungente insistência a fé
que levou Gutiérrez a criar a corrente chamada Teologia da Libertação, que
posteriormente ganhou muitos adeptos não apenas na América Latina, mas também
no hemisfério Norte e no mundo inteiro. Essa teologia e seus
protagonistas também conheceram dificuldades e conflitos devido à opção de
fazer teologia ao lado dos pobres e a partir de suas interpelações. Foram
convocadas a testemunhar e provar sua pertença eclesial e sua ortodoxia.
A
teologia de Gustavo Gutiérrez ofereceu essa prova em suas obras, nas quais o
compromisso inarredável com os pobres se alia indissoluvelmente à mais profunda
espiritualidade cristã e à mais profunda fidelidade à Igreja. Ela ajudou
a Igreja a redescobrir o compromisso com a justiça e o anúncio da boa nova aos
pobres como um de seus imperativos centrais.
O
Papa Francisco, em prólogo feito ao livro, agradece profundamente aos autores
que chamam assim a atenção para este tema fulcral na Igreja: a pobreza do outro
que é critério de verificação da confissão de fé cristã. Afirma sua
esperança de que os leitores terão o coração tocado pela exigência de uma
conversão a esses que, maltratados pela sociedade injusta, são os prediletos de
Deus. E diz literalmente: “E bem saibam, amigos leitores, que nesta
exigência e nesta via, me encontram desde agora com vocês, como irmão e sincero
companheiro de caminho. “
O
Cardeal Müller, o teólogo Gutiérrez e o Papa Francisco querem dizer que
enquanto a pobreza empalidecer no rosto do outro o fulgor de sua imagem e
semelhança com Deus, a Igreja não pode descansar. O que importa nem é
tanto tal ou qual corrente teológica. Importa, sim, a realidade vital dos
pobres. Enquanto esta for uma interpelação dolorosa e cruel lançada à
consciência da humanidade, as preocupações e a reflexão da Teologia da
Libertação estarão mais do que vivas.
Maria Clara Bingemer é
autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas),
entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
É professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio
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