Por Leonardo Boff
Só pessoas muito ignorantes e
alienadas de suas próprias raízes, no fundo materialistas crassos, fruto do
economicismo imperante, podem tomar a decisão de fechar a fonte de onde nasce e
se alimenta a nossa identidade nacional: a cultura, para a qual existia o
Ministério da Cultura. Agora essa fonte está sendo lacrada. E com razão, pois
da cultura nasce a criatividade, o espírito critico e os grandes sonhos que
mobilizam todo um povo. Tudo isso é perigoso para governantes medíocres que não
pensam e temem todo tipo de pensamento que não seja o deles.
Quase sempre, por causa da
colonização, fomos condenados a reproduzir e a mimetizar os padrões culturais
de nossos senhores-opressores. Mas lentamente, vivendo em outro ecossistema,
nos trópicos, fomos desenvolvendo nosso próprio modo de ser, de viver e
conviver, o que podemos chamar a cultura brasileira em estado nascente.
No final de abril escrevi neste
espaço um artigo com o título “A cultura: o nascedouro da utopia Brasil”.Face
aos fatos recentes com a instauração de um governo interino, cego para tudo
aquilo que nos identifica e nos honra, agora retomo o tema.
Todo povo, cada nação elaboram o
seu sonho, a sua utopia própria que dá sentido às práticas sociais e mantem
sempre aberto um horizonte de esperança, particularmente em momentos de crise.
Geralmente esses momentos são
ocasiões de projetar visões novas, buscar saídas salvadoras e deixar irromper a
criatividade. O Brasil está passando por um destes momentos críticos. Portanto,
negar um espaço à cultura é apequenar o país e condená-lo a reproduzir o mesmo
que muitas vezes não deu certo ou poderia ter sido bem melhor.
Celso Furtado que além de
economista renomado foi um dia Ministro da Cultura, constata com tristeza em
seu livro”Brasil: a construção interrompida”(1992): sempre houve “forças
conservadoras e reacionárias que se empenharam em interromper o nosso processo
histórico de formação de um Estado-nação”(p.35), por medo de perder seus
privilégios. Fomos impedidos de construir um Brasil não só imaginário mas real
que integrasse minimamente a todos, multicultural, tolerante e até místico.
Chegou o momento, penso, que se
nos oferece o desafio de construir a nossa identidade ou a nossa utopia
inspiradora. Volto a Celso Furtado. “Ter ou não acesso à criatividade, eis a
questão”(O longo amanhecer, Paz e Terra, Rio de Janeiro 1999, p. 67). E
continua. “Essa cratividade se mostra nas artes, na música, nas imagens de
propaganda e marketing… Uma sociedade só se transforma se tiver capacidade para
improvisar”(p.97).
Nunca nos faltou capacidade de
improvisação e de criação. Faltou-nos a vontade dos governos sem raiz popular e
a disposição de nossas classes neocolonizadas que não souberam valorizar e
aproveitar o enorme potencial criativo do povo.
A partir de que base assumiremos
essa empreitada? Deve ser a partir de algo tipicamente nosso, que tenha raízes
em nossa história e que represente um outro software social. Esse patamar
básico é o que escremos acima, a nossa cultura, especialmente a nossa cultura
popular. Como novamente diz Celso Furtado: ”desprezados pelas elites, os
valores da cultura popular procedem seu caldeamento com considerável autonomia
em face das culturas dominantes”(O longo amanhecer, 1999, p.65). O que faz o
Brasil ser Brasil é a autonomia criativa da cultura de matriz popular.
A cultura aqui é vista como
expressão de um sistema de valores, de projetos e de sonhos de um povo. A
cultura se move na lógica dos fins e dos grandes símbolos e
narrativas que dão sentido à vida. Ela é perpassada pela razão cordial e
contrasta com a lógica fria dos meios, inerente à razão
instrumental-analítica que visa a acumulação material. Esta última predominou e
nos fez apenas imitadores secundários dos países tecnicamente mais avançados. A
cultura segue outra lógica, ligada à vida que vale mais que a acumulação de
bens materiais.
Ninguém melhor que o cientista
político Luiz Gonzaga de Souza Lima, em seu ainda não reconhecido livro:”A
refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada” (2011) para apresentar esta
perspectiva da cultura e que a fez o eixo articulador da utopia Brasil e de
nossa identidade nacional.
A nossa cultura, admirada já no
mundo inteiro, nos permite refundar o Brasil que significa: “ter a vida como a
coisa mais importante do sistema social…é construir uma organização social que
busque e promova a felicidade, a alegria, a solidariedade, a partilha, a defesa
comum, a união na necessidade, o vínculo, o compromisso com a vida de todos,
uma organização social que inclua todos os seus membros, que elimine e impeça a
exclusão de todos os tipos e em todos os níveis”(p.266).
A solução para o Brasil não se
encontra na economia capitalista como o sistema dominante nos quer fazer crer,
mas na vivência de seu modo de ser aberto, afetuoso, alegre, amigo da vida. A
razão instrumental nos ajudou a criar uma infra-estrutura básica sempre
indispensável. Mas o principal é colocar as bases para uma biocivilização que
celebra a vida, que convive com a pluralidade das manifestações, dotada de
incrível capacidade de integrar, de sintetizar e de criar espaços onde nos
sentimos mais humanos.
Pela cultura, não feita para o
mercado mas para ser vivida e celebrada, poderemos antecipar, um pouco pelo
menos, o que poderá ser uma humanidade globalizada que sente a Terra como
grande Mãe e Casa Comum. O sonho maior, a nossa utopia,da mais alta
ancestralidade, é a comensalidade: sentarmos juntos à mesa, como irmãos e
irmãs e desfrutar a alegria de conviver amigavelmente e de saborear os bons
frutos da grande e generosa Mãe Terra.
Leonardo Boff é articulista do JB
on line e escreveu Virtudes para um outro mundo possível (3 vol.),
Vozes 2005-2006.
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