Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
Antes da mensagem deve haver a visão, antes do sermão, o hino, antes da prosa,
o poema. Esta citação do poeta e pastor estadunidense Amos Wilder parece
extremamente iluminadora para as dificuldades que a evangelização enfrenta.
Desde o início do Cristianismo
assim aconteceu. A liturgia sempre precedeu a formulação e a elaboração
das verdades da fé. O que foi rezado, louvado, cantado, expressado nas
celebrações cúlticas das catacumbas dos primeiros séculos foi o material com o
qual os padres da igreja puderam elaborar seus escritos e lançar as bases de
uma dogmática que consiste até os dias de hoje no conteúdo da fé
professada. A liturgia é a primeira instância da tradição, a que se segue
imediatamente à escritura, ao mesmo tempo em que a precede.
O louvor, a celebração, o canto, os rituais não são acessórios na vida cristã,
mas a fundação mesma da identidade desta. A liturgia e o rito revelam
aquilo em que realmente a fé crê e professa, e visibiliza para o mundo a
relação do ser humano com Deus e com o mundo. Como a Igreja louva,
celebra e canta é ou deve ser um testemunho profético da verdade que professa.
A estética, a beleza, a gratuidade atrai para a Beleza maior e infinita
d’Aquele que é o centro da vida.
Portanto, retorna aqui a máxima Lex Orandi Lex Credendi, o “ leitmotiv”
que significa que é a oração que leva à fé, ou melhor dito, é a liturgia que
conduz à teologia. Este é um antigo princípio cristão que está no
fundamento da elaboração dos primitivos “Credos” ou “Símbolos da fé”, e
igualmente um antigo cânon da Escritura, que contém em muitas de suas passagens
extratos litúrgicos.
Na Igreja Primitiva havia
tradição litúrgica antes do credo e da doutrina. E estas tradições
litúrgicas proveem o marco teológico para estabelecer os credos e o cânon. A
frase latina (Lex orandi, lex credendi) algumas vezes expandiu-se tornando-se Lex
orandi, lex credendi, lex vivendi, aprofundando aí as implicações desta
verdade: a maneira pela qual celebramos reflete no que cremos e determina como
vivemos.
Mas ao lado das celebrações e rituais propriamente religiosos existem outras
possibilidades para a expressão da fé. Essas formas de expressão seguramente
carregarão consigo novas linguagens. Em nosso caso, a da religião e da
liturgia, certamente, mas também e não menos a da poesia, da arte, da
literatura, da música e de todas as outras formas estéticas que a humanidade
inventou em sua história de muitos milhares de anos.
Os desenhos e pinturas nas paredes das cavernas dos grupos humanos primitivos,
os primeiros rabiscos, os fragmentos encontrados em diversos pontos do planeta
dão testemunho desta primordialidade da imaginação e do sopro criador, que faz
a humanidade caminhar em direção à sua vocação que, em termos bíblicos, é ser
um sopro animado pelo espírito divino.
Uma das características do ser humano, uma das “constantes” que aparecem em sua
identidade constitutiva é este dom de passar além do sensorial e aceder ao
espiritual. Aqui entendemos por “espiritual” tudo aquilo que direta ou
indiretamente se encontra conectado com o espírito, com aquela dimensão humana
que passa além dos cinco sentidos. Está incluída aí a estética sob as
suas diversas formas. E também a religião. O espírito informa e conforma
a corporeidade.
Isso nos mostra que a maneira
concreta de falar da Transcendência que nos desafia e nos habita, nos encanta e
nos eleva, nos carrega a profundidades insuspeitadas e batiza nossos sentidos
de maneira que, tocando o universo, possamos perceber que o segredo escondido
nele e para além dele é um Mistério. Mistério este que desde a fé
chamamos “Deus”.
Para falar deste mistério, há que passar pela linguagem conceitual, rigorosa e
acadêmica, mas não necessariamente deter-se indefinidamente nela.
Conceitos e enunciados são importantes e pertinentes, mas as tradições
teológicas ocidentais e orientais, os místicos e profetas de todos os tempos
nos dizem que há mais possibilidades, sempre abertas, de propor o discurso
teológico. Ha maneiras de falar de Deus mais poéticas, evocativas,
empatizantes, performativas, implicantes, esperançadas... que movem mais o
leitor que a simples “passividade” assimilativa.
Assim sucede no Novo Testamento,
por exemplo. As parábolas de Jesus são consideradas poéticas por mais de
um autor e comentador. Ao serem analisadas, estão sujeitas à discussão sobre se
a estética deve ser considerada independente do autor. Mas no caso de Jesus
essa dissociação não procede. Suas parábolas são reflexo de seu mundo
interior, de sua compreensão do reino. A obra de arte é a objetivação
final da intuição poética, o que a obra aspira, em última instância, transmitir
à alma dos outros e essa intuição poética que estava na alma do poeta. “Assim
acontece com Jesus, que toma elementos de seu contexto vital, com sua visão
inspirada pelo Espírito Santo e transmite sua experiência de Deus aos
discípulos e aos que o seguem. Sua sensibilidade, profunda ligação e
compromisso com a experiência que faz ao lado de sua criatividade e observação
da realidade o levam a compreender e transmitir o que considera como mais
importante: seu amor ao Pai e seu projeto do Reino. Por isso, sua fantasia
criadora, sua imaginação inspirada, as parábolas que narra são determinantes
para o sentido que comunica. E o que sai de sua boca é, em verdade, uma
teopoética.
Para poder falar diretamente à
mente e ao coração de nossos contemporâneos, importa não apenas recorrer a
textos, canções, obras de arte explicitamente religiosas. Mas também e
não menos lançar mão de autores e obras que não atuam no campo da teologia, e
sim na arte, na literatura, no cinema, na imagem entendidos em seu sentido
secular. Sua arte e poética têm em comum com a teologia a sede de sentido para
a vida, a sede de justiça, liberdade, vida plena e a fé na humanidade.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A
teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos
compartilhados (Ed. Vozes)
Copyright 2016 – MARIA
CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário