Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Talvez
um dos pontos mais positivos da exortação pós-sinodal “Amoris Laetitia”
seja o fato de, diferente de outros documentos, nele aparece a Igreja não
apenas apontando os erros alheios, mas também reconhecendo os próprios.
Esse tom de humildade e autocrítica é de uma beleza ímpar e muito mais atraente
do que discursos acusadores que antes tiveram lugar. É isso que vamos
perceber no documento quando este fala do sacramento do matrimônio.
Em
nenhum momento o texto da exortação diminui, minimiza ou nivela por baixo a
vocação grande e bela de duas pessoas que desejam se unir por causa do amor que
experimentam mutuamente. Trata-se de uma vocação que perpassa toda a
história do povo de Deus, desde o Antigo Testamento. Se olhamos para a
caminhada do antigo Israel, vemos que a família é o modo corrente e excelente
pelo qual o povo eleito se organiza. As pessoas são vistas dentro do
escopo de relações familiares: são filhos de alguém, sabem o que Deus
disse e fez pelo povo porque seus pais lhes contaram, e sobretudo, simbolizam
sua origem em um casal, um primeiro casal: Adão, feito da terra e Eva, a mãe
dos viventes.
Depois
disso são constantes as referências a Abraão, que se casou com Sara; a Isaac,
que conheceu sua mulher Rebeca dentro da tenda; a Jacó, que trabalhou sete anos
nas terras de Labão por amor a Raquel, que desejava como sua esposa. No
Novo Testamento, as genealogias dão início à história de Jesus, o Messias, que
sendo filho de José e Maria era da casa de David (ou seja, da família) e como
tal era reconhecido.
Assim,
a Igreja se preocupa com as circunstâncias que perpassam o mundo atual, temendo
pela seriedade do matrimônio. Ao analisar a realidade, o Papa, que assina
a exortação resultante do recente Sínodo, ressalta todos os elementos que hoje
ameaçam o matrimônio e a família: a “cultura do provisório” - que instaura uma
impressionante rapidez no movimento com que as pessoas passam de uma relação
afetiva para outra -, em sintonia com outros pensadores contemporâneos, como
Zygmunt Bauman, denuncia os amores líquidos que se fazem e se desfazem com um
simples clique do mouse do computador. Adverte igualmente para “o
medo que desperta a perspectiva de um compromisso permanente”; a falta de
gratuidade das relações “que medem custos e benefícios e se mantêm apenas se
forem um meio para remediar a solidão, ter proteção ou receber algum serviço”.
A
reificacao do outro, transformando-o em coisa, em objeto com fins utilitários,
leva a encarar a união como a posse de um objeto, do qual se usa enquanto
serve, satisfaz, excita. E quando baixa o nível de excitação, que é como
uma droga sem a qual não se pode viver, descarta-se a pessoa reificada, que
passou a ser um estorvo. E parte-se para novas aventuras. Usar e jogar
fora, gastar e rasgar quando ficou velho, sugar e espremer enquanto dá suco,
depois jogar o bagaço fora.
Se
é bela a imagem de um jovem casal trocando alianças e comprometendo-se em um
amor para toda a vida, creio que mais belo ainda é ver um casal de idosos
andando de braço dado, um apoiando e ajudando o outro(a), o(a) outro(a) sempre
atento(a) às necessidades e desejos do companheiro(a) e vendo como pode
supri-las. A “Amoris Laetitia” chama a atenção para esta
realidade. Convida a ela. Convoca a sua experiência e prática.
Porém,
não para aí. Reconhece humilde e realisticamente que muito das
dificuldades que hoje enfrentam as novas gerações para entrar no compromisso do
matrimônio se deve, em parte, a uma pastoral matrimonial não adequada aos
nossos tempos. O Papa afirma que devemos “reconhecer que, às vezes, a
nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as
pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nós lamentamos, e nos convém uma
salutar reação de autocrítica.”
Refere-se o Pontífice a uma visão do matrimônio e da vida conjugal muito
marcada por uma concepção sacrificial e dolorista que não permitiu que a beleza
do amor, do gozo, do prazer e da alegria encontrasse seu lugar no proscênio
eclesial.
“...
Muitas vezes – diz o texto - apresentamos de tal maneira o matrimônio que
o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram
ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação.” E segue: “
Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato,
construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das
possibilidades efetivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização,
sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, impediu que o matrimônio
fosse mais desejável e atraente; muito ao contrário. ”
Que transparência e quanta verdade! Só nos resta agradecer aos padres
sinodais e a Sua Santidade Francisco pela simplicidade com que reconhecem suas
falhas. Ai já está meio caminho andado para corrigi-las.
Seguramente este tom de humildade, de contrição mesmo, ajudará muitíssimo a que
o matrimonio volte a ser um ideal primeiro na vida das jovens gerações que
buscam a felicidade e o amor de coração sincero.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil
– Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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