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quarta-feira, 8 de abril de 2020

DOM HELDER, DOM QUIXOTE...E JESUS CRISTO





Por Eduardo Hoornaert.

Esse título soaria provocativo demais, não fosse que o próprio Helder Camara, em Carta Circular de 1-2/10/69, (IV, IV da Edição Cepe, Recife, p. 135), não só declara que não se sente incomodado com os que o comparam com Dom Quixote, mas vai além e escreve:

Quem não sabe
que o verdadeiro Dom Quixote
se chama Jesus Cristo? 

Talvez seja interessante comentar um pouco essa comparação estranha, no mínimo ousada, entre três personagens tão distantes e diferentes em muitos aspectos.
Vamos lá?

1. Sobram episódios quixotescos na biografia de Helder Camara. Aqui só lembro as ‘loucas sugestões’ que o então Arcebispo de Recife encaminha, meados de novembro de 1965, ao Papa Paulo VI, que lhe pedira de encaminhar ideias para as cerimônias finais do Concílio Vaticano II em Roma. Helder, então se empenha com tanta aplicação na preparação dessas sugestões, que nem tem tempo para participar da assinatura do Pacto das Catacumbas no dia 16 de novembro. Quando as Sugestões para o encerramento do Concílio se apresentam ao Papa, elas se apresentam como uma perfeita ‘obra de malandro’. Helder sabe perfeitamente que suas sugestões são irrealizáveis, como declara abertamente: sei que o Santo Padre não vai poder fazer nada disso. Mas sinto necessidade de apresentar-lhe estas sugestões que, no íntimo, ele gostará de receber. Mas é preciso brincar para não chorar: hoje - não se espantem - pretendo, às 16 horas, ver o Circo Orfeu. Preciso mergulhar no mundo das crianças: elas acreditam no impossível. (Carta Conciliar 6-7/11/1965, I, III, p. 216).

Em que consistem as propostas de Helder ao Papa? Ele propõe terminar o Concílio com uma série de ‘diálogos’ a serem programados para os seis últimos dias do Concílio, ou seja, entre os dias 2 e 8 de dezembro de 1965. No dia 2 ‘Diálogo do Santo Padre com um grupo de Ateus, em homenagem a todos os que têm fome e sede de verdade’, na Biblioteca do Vaticano; no dia 3 ‘Prece ecumênica com os Hinduístas’ na Pinacoteca do Vaticano; no dia 4 ‘Prece ecumênica com os Budistas’, no Museu do Vaticano; no dia 5 ‘um Encontro inesquecível, que dê oportunidades excepcionais ao Espírito Santo, em uma Sala dominada pela figura de Abraão ou da Virgem’; no dia 6 ‘Prece ecumênica com os Judeus na Antiga Sinagoga de Roma, transformada em Igreja católica, ou em Sala dominada pela figura de Moisés’; no dia 7 ‘Vigília Bíblica com os Observadores não católicos’, na Basílica de São Pedro. Só falta uma referência aos muçulmanos, a serem talvez incluídos no tema do dia 5 de dezembro. Finalmente, no dia 8 de dezembro, daríeis permissão para que, sob Vossa autoridade e convosco, o Concílio canonizasse, publicamente, o Papa João XXIII, na Praça de São Pedro? Santo Padre, Paulo VI vai mais longe que qualquer Bispo e tem mais audácia que o Concílio (ibidem, p. 215). Empolgado, Helder prossegue, desta vez comentando o Discurso de Encerramento: Talvez, Santo Padre, o Discurso de Encerramento seja a hora providencial para dizer que, permanecendo Amigo de todos os povos e justamente para sê-lo sempre mais, pensais em despedir-vos do Corpo Diplomático e em trazer de volta os Vossos Núncios (ibidem, p 215).

Propostas absolutamente impossíveis a serem concretizadas. Helder o sabe perfeitamente e termina sua Carta ao Papa com os seguintes dizeres: Santo Padre, a única escusa para esta Carta é reafirmar que ela é um gesto de puro amor. Muito filialmente em Jesus Cristo (ibidem, p. 216). Só falta acrescentar a fase de 1969: Quem não sabe que o verdadeiro Dom Quixote se chama Jesus Cristo? Pois, enquanto o Dom Quixote de Cervantes enxerga moinhos gigantes, monges feiticeiros, carneiros inimigos, Helder vê cardeais, diplomatas e autoridades perambulando em vastos corredores e imensas salas. Diante desse quadro, Helder reage como o herói de Cervantes, ele acredita ‘que o impossível é possível e que a possibilidade sempre espreita, inquieta, debaixo da carapaça protetora da impossibilidade, esperando o momento de irromper’, segundo dizeres do filósofo polonês Zygmunt Bauman.

2. Mas onde está mesmo o segredo do romance de Cervantes, que conquistou milhões de pessoas ao longo desses cinco últimos séculos?  Em 2002 escolhido melhor obra de ficção de todos os tempos (pelo Clube Norueguês de Livros), uma obra que conta com a admiração geral e pode contar com as seguintes palavras do romancista russo Dostoiévski: ‘nada existe de mais profundo e poderosos no mundo inteiro que essa peça de ficção’. O livro mais difundido do mundo, depois da Bíblia. Nada menos de 450 milhões de cópias impressas, em cinquenta línguas. Quixote coloca Aristóteles de escanteio e toca tão profundamente a alma humana que o escritor argentino Jorge Luís Borges não hesita em dizer que Quixote é um ‘patrimônio da humanidade’.

Costuma-se dizer que o segredo do sucesso do romance de Cervantes está no fato que Quixote não se conforma com a realidade em seu redor. Certo, Quixote sempre enxerga um ‘outro mundo’, não se conforma com o mundo que seus olhos lhe apresentam. Moinhos lhe parecem gigantes, monges feiticeiros, carneiros soldados de um tremendo exército e a camponesa Dulcineia se lhe apresenta como uma dama da mais alta sociedade.

Contudo, há muita literatura escrita a partir de uma não-conformação com a realidade vivida. Então, o que torna a literatura de Cervantes realmente única? Não estará no fato que um supremo sorriso paira sobre sua obra, uma refinada ironia? Uma ironia que premune o leitor de Cervantes de dar uma importância exagerada aos chamados ‘atores’ que ocupam a cena histórica e que, na realidade, são apenas ‘atantes’. Os ‘atores’ reais não costumam aparecer em cena, atuam atrás dos bastidores. A raiva com que Quixote ataca os moinhos se volta contra um mundo que é um gira-gira de palavras e ações, provenientes de ‘atantes’ e que não levam a nada.

3. Mais de uma vez, o supremo sorriso de Cervantes salvou Helder em momentos críticos de sua vida. Tomemos o exemplo do que lhe aconteceu em 1978. O biógrafo Nelson Piletti, na página 427 de seu livro ‘Dom Hélder Câmara, Entre o Poder e a Profecia’ (Ática, São Paulo, 1997), escreve que Helder, naquele ano, teve a ideia de abdicar da diocese. Uma pesquisa feita por M-B Potrick vai na mesma linha: em 1978, Helder suspendeu abruptamente suas viagens ao exterior (Dados biográficos de um pastor e profeta universal, em: Vários, Dom Helder, Pastor e Profeta, São Paulo, Edições Paulinas, 1983, pp. 19-20). Depressão? Cansaço? Decepção no relacionamento com Roma? Será que Helder, em algum momento, pensou em fazer o que o bispo francês Jacques Gaillot faria quase vinte anos depois, ou seja, abdicar da diocese e formar uma ‘minoria abraâmica’ em seu redor? Não sei. Só posso dizer que ele superou essa fase por conseguir não dar tanta importância à sua própria pessoa, não se tornar dramático. Ele escreve: abdicar seria falta de simplicidade (Piletti, ibidem) Como Quixote, Helder passa um sorriso sobre o que ele está vivenciando e pensa: o governo militar passará, a perseguição política passará, o pontificado do Papa João Paulo II passará. Tudo passa. O importante consiste em manter os olhos abertos, enxergar sinais nem sempre claros que aparecem no horizonte, alimentar o sonho impossível na certeza que o impossível se tornará realidade um dia, que o Reino de Deus há de vir e que o importante não consiste em se fazer de mártir, mas em difundir o sonho.

Quando se sonha sozinho
É apenas sonho.
Quando sonhamos juntos
É o começo da realidade.

Helder supera os momentos de depressão por passar por cima das dificuldades do momento e se dedicar ao que lhe parece realmente importante: lançar programas que animem as pessoas a resistir e alimentar o sonho. Já no ano 1968 lança o programa da Não-violência ativa e da Pressão Moral Libertadora, inspirado em Mahatma Gandhi e Martin Luther King. No lançamento de dito programa, um grande número de pessoas se reúne no pátio do Colégio das Irmãs Doroteias em Recife, apesar de forte aparato policial. O movimento ganha sempre mais força e durante anos se repetem atos públicos promovidos pela Pressão Moral Libertadora, sempre em recintos privados (pátios de colégios católicos ou de igrejas), sempre assistidos por muita gente, disposta a enfrentar cordões de policiamento.

4. Os evangelhos relatam não poucos episódios quixotescos na vida de Jesus de Nazaré. O mais impressionante talvez seja sua entrada em Jerusalém, ele sentado em cima de um burrinho. Mas há muitos outros. Quem lê com atenção a famosa cena com Pedro, relatada no capítulo 16 do evangelho de Mateus, versículo 18, sentirá um discreto e persistente sorriso ‘quixotesco’ pairar no ar. Jesus promete a Pedro as chaves do reino, qual Dom Quixote ao prometer a Sancho Pança a governança de uma ilha encantada. Com tudo: guardas e chaveiros, servidores, portas e ferrolhos contra as portas do inferno. Mas, em outros tantos trechos dos evangelhos, Jesus afirma que seu reino não comporta chaves, não é uma fortaleza a ser defendida. É um grão de mostarda, um campo que esconde pérolas enterradas, um fermento invisível, um tesouro escondido. É o reino das dez virgens sábias, com precedência para meretrizes (Mt 21, 31). Os fariseus perguntaram (a Jesus) quando chegaria o reino de Deus. Ele respondeu: Não se pode especular sobre a vinda do reino de Deus. Ninguém poderá dizer ‘está aqui’ ou ‘acolá’, pois o reino de Deus já está no meio de vocês (Lc 17, 20-21). Nada de chaves e pesadas portas. Jesus está brincando com seu amigo Pedro, tão ingênuo como Sancho Pança. 

Outros episódios: quando vai preso, Jesus diz a seus apóstolos: podem dormir agora (Mt 26, 45). Aos fariseus, ele diz: não vim chamar justos, mas pecadores (Mt 9, 23). Indagado se convém pagar o imposto a César, ele desconversa: qual é a efígie impressa na moeda? Em Mc 10, 17-20, quando um jovem se ajoelha diante de Jesus e pergunta: bom mestre, o que devo fazer para ganhar a vida eterna?, vem logo a reação: porque você me chama bom? Ninguém é bom senão Deus (v. 18). Você não precisa se ajoelhar diante de mim, siga os mandamentos (v. 19). Por que perguntar coisas que você já sabe?

Bem no início do evangelho de João (1, 19-51), Jesus brinca com Natanael e diz: eu vi você sob a figueira (1, 48). Na cena das bodas em Caná, ele se deleita com o mestre-sala que, às pressas, chama o noivo: a água virou vinho (2, 10). Na cena subsequente, ele desafia seus adversários: venham, destruam este templo: em três dias o reedificarei (2, 19). Na conversa com Nicodemos, Jesus brinca o tempo todo com o sábio fariseu, fala em nascer e renascer, nascer da água e renascer no espírito. Nicodemos fica desorientado: como posso nascer de novo, sendo velho? Como entrar de novo no ventre de minha mãe? (3, 4). No encontro com a mulher samaritana, Jesus lhe pede: dê-me de beber (4, 7). Quando ela se mostra surpresa, ele desconversa e diz que está falando de ‘outra água e outra sede’. A mulher não entende mais nada: senhor, dê-me dessa água para que eu não tenha que vir mais aqui (v. 15). E finalmente se confessa vencida: ele me disse tudo o que eu fiz (v. 39). Resultado: Jesus fica hospedado na aldeia dos samaritanos, com seus apóstolos, por dois dias. A mesma ironia na cena da unção em Betânia: vocês sempre terão pobres (para fazer suas caridades) (12, 8). No episódio do lava-pés, Jesus brinca com Pedro: se eu não lhe lavar os pés, você não terá parte comigo (13, 8). E depois de lavar os pés de Pedro, ele se sai com esta: nem todos ficam puros (depois de se lavar: v. 10).

É largamente por meio de cenas quixotescas que Jesus vai construindo uma sólida liderança sobre seus discípulos. Ele sabe empregar a palavra certa no momento certo e se sai habilmente de situações embaraçosas: deem a César o que é de César, lancem a primeira pedra, destruam o templo. Quando os discípulos dizem que não o entendem, Jesus continua provocando: estou tanto tempo com vocês, e vocês ainda não me conhecem? (Jo 14, 9). E continua falando: na casa de meu Pai há muitos cômodos (14, 2). Aí, Tomé fica nervoso: senhor, não sabemos para onde você vai, e como podemos saber o caminho? (v. 6). E Filipe: senhor, mostre-nos o Pai e ficamos satisfeitos (v. 8). Jesus se limita a responder: como vocês são duros no entendimento!

Por não prestar a devida atenção ao aspecto quixotesco de diversas narrativas evangélicas, muitos exegetas perdem a oportunidade de apresentar um Jesus inteligente, crítico, inovador. Uma exceção é Erasmo de Roterdã (‘Ratio verae theologiae’, 1519) que, em sua exegese, resgata um Jesus irônico, inteligente, incisivo, sincero, inimigo jurado da mentira e da hipocrisia.  Mas o Jesus de Erasmo não vinga na igreja. Por uma questão que vem de longe. Desde o momento, no século IV, em que o Patriarca de Constantinopla, João Crisóstomo, afirma que Cristo nunca riu (Migne, Patrologia Latina, 57, p. 69), os abades dos mosteiros (onde jovens monges recebem o encargo de copiar textos e mais textos) fazem questão de esconder no mais recluso das bibliotecas monacais textos que tratem do riso de Jesus, como lembra Umberto Eco em seu romance ‘O nome da Rosa’. Jesus brincalhão é altamente inconveniente nos mosteiros, nos conventos, nas universidades e nos colégios. Mas na tradição popular Jesus continua rindo. Seu modo de se comportar combina bem com o gênio brincalhão do ser humano. A comicidade afasta a hipocrisia, enquanto um Deus que não ri fomenta o medo, a subserviência, a docilidade. Como escreve o linguista russo M. Bakhtin, o poder, a violência ou a autoridade jamais empregam a linguagem do riso (Bakhtin, M.M., A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais, Hucitec, São Paulo, 1996, p. 78). Nesse sentido, o riso de Jesus liberta seus seguidores de um medo ancorado no espírito humano desde milhões de anos (ibidem, p. 81). A verdade de Jesus não é a verdade dos púlpitos nem dos tronos sagrados, é a verdade da ‘mesa’ eucarística, em torno da qual se ri e se diz a verdade. Pois os evangelhos emanam de conversas na mesa, como ainda hoje se pode sentir quando se lê os textos com atenção. Pois sobre esses antigos textos evangélicos ainda paira o sorriso de Jesus. Tenho por mim que nas comunidades cristãs das origens se riu muito, embora me faltem documentos escritos para fundamentar o que escrevo aqui. Como não rir quando se acredita que Jesus ressuscitou?

5. Para terminar, lembro que o tema do Reino de Deus, tão cultivado por Jesus e absolutamente central na mensagem evangélica, traz consigo riso e alegria. A expressão ‘reino de Deus’ aparece 53 vezes em Mateus, 18 vezes em Marcos, 45 vezes em Lucas, 5 vezes no evangelho de João. Jesus recorre a uma abundância de imagens para explicar o que ele entende por ‘reino de Deus’. Quando, no capítulo 13 de Mateus, ele compara o reino de Deus a uma semente, um grão de mostarda, um punhado de fermento, um tesouro escondido, uma rede lançada ao mar, uma pérola preciosa, ele suscita riso, prazer e alegria. Eis a ‘boa nova’, o ‘euaggèlion’. O evangelho de Marcos deixa claro que o reino de Deus, tal qual Jesus o entende, não é um território santo em meio à corrupção do mundo, nem um reino político, nem uma esperança além da morte. É um estado de espírito impregnado de combatividade e alegria. Os demais escritos do novo testamento dizem a mesma coisa. Há aspectos duros, sem dúvida, pois a luta pelo reino de Deus postula um empenho no sentido de lutar em prol de um o mundo mais justo e fraterno. Mas o discípulo tem uma certeza que traz alegria: desde o momento em que ele começa a se comportar, concretamente, como alguém que vive a fraternidade e a solidariedade, ele já participa do reino de Deus.

Ao longo da história, a humanidade nunca deixou de sonhar com um mundo de felicidade. Os antigos hebreus sonhavam com o paraíso, os guaranis com ‘a terra sem males’, os gregos com a ‘república ideal’ de Platão ou com o ‘reino de justiça’ de Aristóteles, os romanos com a paz estendida sobre toda a terra (a ‘pax romana’), os medievais com a santa igreja, os modernos com a ciência, os capitalistas com a riqueza, os socialistas com relações sociais baseadas na justiça. Enfim, o homem não deixa de sonhar. Em todos esses sonhos, Dom Quixote injeta uma boa dose de riso e ironia. E Jesus não faz o mesmo? E Dom Helder não faz o mesmo? Acima de um arco de séculos, os três têm algo fundamental em comum: a alegria, o riso, a ironia, nascidas da esperança.

Quem não sabe
 que o verdadeiro Dom Quixote
se chama Jesus Cristo?  (Cartas Circulares, IV, V, p. 135).


Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

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